#acessibilidade: Imagem da deusa do Sol na religião xintoísta, Amaterasu. Mostra uma mulher japonesa, trajando quimono e usando um colar de pedras preciosas. Ela segura uma espada na mão direita. Há várias listas concêntricas, saindo de sua cabeça, numa alusão aos raios solares.
Texto escrito por Marcelo Leigui
“Amaterasu, a deusa do Sol, vivia em uma gruta, em companhia de suas criadas, que cotidianamente lhe teciam um quimono da cor do tempo. Todos os dias de manhã, ela saía para iluminar a Terra. Um dia, o seu irmão, Susanoo, deus do mar e da tempestade, destruiu os campos de arroz e arremessou um cavalo celestial morto sobre as tecelãs. Elas, amedrontadas, se estranharam e uma delas morreu atingida pela sua própria lançadeira. Amaterasu, irritada, escondeu-se em sua caverna celestial e sua luz sumiu para sempre. O mundo congelou e os campos secaram. O pânico se espalhou até o céu, onde ficavam os deuses, que como os terrestres, não viam nada. Temendo a escuridão eterna, os deuses organizaram uma festa na entrada da caverna. Omoikane, o deus da inteligência, pediu a todos que comparecessem ao redor da caverna e colocassem um espelho apontando para a entrada. Pediram a Uzume, a mais engraçada das deusas, que os distraísse diante da gruta em que Amaterasu estava enclausurada. Uzume dançou fazendo caretas e expondo suas partes íntimas. Estava tão engraçada que os deuses caíram na gargalhada. Curiosa, Amaterasu abriu a pedra que fechava a gruta para espiar. Os deuses lhe direcionaram o espelho e ela viu uma mulher esplêndida. Então, os deuses agarraram-na e Amaterasu saiu para sempre de sua caverna celestial. O mundo estava salvo!”
Amaterasu é a deusa do Sol e do universo na mitologia xintoísta. Seu nome completo é Amaterasu-ōmikami, ou «a Grande Deusa Augusta que ilumina o céu», e é derivado de “Amateru” que significa «que brilha no céu». Seu nome figura em diversos animes, mangás, vídeo games, seriados, filmes e músicas. Agora, também na Astrofísica.
Em 27 de maio de 2021, o experimento Telescope Array, localizado em Utah nos Estados Unidos, detectou a partícula Amaterasu, o segundo raio cósmico mais energético já observado. Ele atingiu um nível de energia gigantesco para uma partícula subatômica: 244 EeV, ou exa-elétron-volts. Para se ter uma ideia, 1 eV (elétron-volt) é a energia cinética que um elétron adquire quando submetido à diferença de potencial de 1 volt, o que corresponde a uma energia ínfima em nosso mundo (1 eV = 1,6 x 10–19 J), mas adequada para se estudar os fenômenos atômicos. Por exemplo, a energia de ionização do elétron no estado fundamental do átomo de hidrogênio é de 13,6 eV. Nos processos nucleares, como a emissão de uma partícula alfa, a energia pode chegar aos mega (milhões) de elétron-volts, ou MeV. O LHC, o Grande Colisor de Hádrons do CERN, que é a máquina mais poderosa que a humanidade já construiu com todo o nosso conhecimento científico e tecnológico, produz colisões de partículas com energias de tera (trilhões) de elétron-volts, ou TeV. Acima dessas energias, nenhum processo ou laboratório terrestre é capaz de acelerar partículas. Somente no Universo afora que elas são produzidas. Os modelos preveem que, dentro da nossa Galáxia, supernovas, estrelas de nêutrons, ou jatos emanados de buracos negros podem acelerar até a casa dos exa (quintilhões) de elétron-volts, ou EeV. Isto é, 10 18 eV − uma potência de 10 com 18 zeros! Chegamos à escala da Amaterasu, mas ainda tem um fator de mais de 200 na frente. Desta forma, a Amaterasu só pode ter sido produzida fora da Via-Láctea. Estamos falando de Galáxias com Núcleos Ativos (AGNs, na sigla em inglês), galáxias de starburst − que têm uma alta taxa de formação de estrelas −, ou outros processos ainda mais misteriosos como os surtos de raios gama (GRBs, na sigla em inglês).
E por que a Amaterasu é a segunda partícula mais energética? Por que há mais de 30 anos atrás, em um experimento que foi um predecessor do Telescope Array, também no deserto de Utah, chamado de Fly’s Eye − pois seu conjunto segmentado de espelhos fazia lembrar o olho de uma mosca − foi observada a “Oh-My-God particle” com energia de 320 EeV. Conta-se que ela foi descoberta por acaso quando um estudante de pós-graduação resolveu analisar novamente eventos inicialmente descartados pelo sistema de aquisição de dados. A quantidade de luz nos telescópios era tanta que ela foi classificada como um relâmpago. Mas naquela noite não estava relampejando e o evento tinha toda a assinatura temporal de um genuíno raio cósmico. Quando o estudante mostrou o seu resultado e o valor de energia reconstruído ao seu professor, este exclamou: “Oh, my God!”.
O professor Toshihiro Fujii da Universidade de Osaka, membro da colaboração Telescope Array e um dos principais co-autores do trabalho, também se espantou com a Amaterasu: “Quando descobri este raio cósmico de ultra-alta energia, pensei que devia ter havido um erro, pois mostrava um nível de energia sem precedentes nas últimas 3 décadas”. Seu estudo foi publicado na revista Science em 23 de novembro do ano passado.
Contudo, a partícula Amaterasu guarda um grande mistério! Os físicos sabem que o meio galáctico e extragaláctico é permeado por campos magnéticos. Sabem também que partículas carregadas eletricamente, como os raios cósmicos, são defletidas por estes campos. Assim, em sua jornada desde sua origem até a Terra, elas podem fazer um caminho todo tortuoso, embaralhando sua direção de chegada. Perde-se completamente a informação de suas origens. Só que este efeito é menor para as partículas mais energéticas. Ou seja, dada a enorme energia da Amaterasu, acredita-se que ela tenha viajado pela nossa Galáxia (e mais ainda fora dela) quase em linha reta. Agora adivinhem para onde ela aponta? Para uma região praticamente vazia!
Os astrônomos mapearam muito bem todas as regiões em nossa vizinhança cósmica e sabe-se que existem regiões com alta densidade de galáxias e outras regiões praticamente vazias. O Universo é parecido com uma esponja e nós vivemos numa região da esponja, conhecida como o Supergrupo de Virgem. E a Amaterasu parece vir de um dos buracos da esponja, conhecido como o Vazio Local. É uma região de centenas de milhões de anos-luz com quase nada. Com nenhuma potente galáxia ativa, ou nenhuma galáxia de starburst em seu caminho. A hipótese que resta é de a Amaterasu ter sido criada em um evento transitório em alguma galáxia indistinta, como se ela tivesse surgido de sua gruta.
Assim como a deusa, o raio cósmico Amaterasu tem os seus mistérios. Sempre que uma descoberta científica é feita, novas perguntas surgem. Onde foi originada a partícula Amaterasu? Quais são os fenômenos que deram origem a sua tamanha energia? Serão abertas possibilidades para Nova Física? Serão defeitos topológicos na estrutura do espaço-tempo no Universo? Ou cordas cósmicas em colisão? Ou ainda novas partículas desconhecidas pelo Modelo Padrão?
Fontes:
Para saber mais:
O conto de Amaterasu. Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Amaterasu#.
Amaterasu particle. Wikipédia. Disponivel em: https://en.wikipedia.org/wiki/Amaterasu_particle.
Oh-My-God particle. Wikipédia em: https://en.wikipedia.org/wiki/Oh-My-God_particle.
An extremely energetic cosmic ray observed by a surface detector array, Telescope Array Collaboration, R.U. Abbasi, et al., Science, Vol. 382, Issue 6673, pp. 903-907 (23 Nov. 2023). Science. Disponível em: Science.
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