#acessibilidade Ilustração do coronavírus feita pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças estadunidense. Esfera azul cinza clara com pequenos pontos laranjas e grandes vermelhos ao longo de sua superfície. O fundo é de um cinza escuro com alguns pontos luminosos laranjas.
Texto escrito pelo colaborador Tiago Rodrigues
Muitos de nós com menos de meio século de vida nunca vivenciamos uma experiência como essa de excepcionalidade provocada por um agente biológico, o corona vírus SARS-CoV-2, causador da denominada COVID-19. Parece que estamos todos atuando em cenas de filmes ‘hollywoodianos’, tal como Epidemia (dirigido por Wolfgang Petersen, 1995). De certo, depois que as condições de exceção acabarem, a sociedade haverá se transformado, cultural, social e cientificamente falando.
Todos, desde o Estado até a sociedade civil, almejam que, em um toque de mágica, apareçam métodos de diagnóstico e tratamentos que resolvam o problema em um curto período de tempo. No entanto, particularmente no Brasil, a Educação, Ciência e Inovação nunca tiveram os investimentos que deveriam para que, nesse momento, estivessem prontas para enfrentar essa guerra biológica. Mesmo assim, ainda que em condições longe das ideais, os cientistas dessa área de pesquisa e seus laboratórios estão trabalhando incessantemente para entender e resolver o problema ou, no mínimo, mitigá-lo para que ele se resolva espontaneamente por mudanças nas características de transmissibilidade e virulência, não sem antes abater um considerável número de vítimas.
Com relação aos métodos de diagnóstico, considerando o conhecimento estrutural e funcional sobre a estrutura do DNA e as maquinarias celulares de replicação e transcrição obtidos pela Ciência “básica” ao longo dos últimos 60 anos, aliado ao avanço mais recente das técnicas de Bioquímica e Biologia Molecular, foi possível chegar rapidamente a soluções, com diagnósticos rápidos e precisos da COVID-19, lembrando da necessidade de se ter infraestrutura adequada para se atender as normas e níveis de biossegurança para manipulação desses vírus e amostras biológicas potencialmente contaminadas. A dificuldade nesta área neste momento, tem sido a produção e disponibilização dos kits para diagnóstico em escala, a fim de testar toda a população para o vírus.
Por outro lado, no que tange aos aspectos terapêuticos ‘a coisa’ não é tão simples como parece, ou pelo menos, não tão rápida. A corrida para o desenvolvimento de opções terapêuticas contra a COVID-19 se divide basicamente em duas frentes, uma buscando o desenvolvimento de uma vacina que possa imunizar a população e a outra buscando medicamentos capazes de atuar contra esse novo vírus e os sinais e sintomas por ele causados. O desenvolvimento de medicamentos eficazes envolve o conhecimento detalhado dos aspectos moleculares e da biologia do novo vírus, e tais pesquisas estão em curso. Mas para não ficar de braços cruzados esperando, muitos grupos de pesquisa no mundo todo estão buscando empiricamente moléculas que possam atuar contra o SARS-CoV-2.
Uma abordagem que tem sido usada recentemente para o tratamento do câncer passou também a ser empregada nas últimas duas ou três semanas também para a COVID-19, que é o reposicionamento de fármacos (do inglês, drug repurposing ou drug repositioning)1. Essa abordagem consiste em testar a ação antiviral de fármacos já existentes no mercado, incluindo os antigos e os recentemente descobertos, daí o surgimento da polêmica com a cloroquina. A cloroquina foi uma molécula descoberta na década de 30 pela Bayer2 e é usada com segurança e eficácia terapêuticas para o tratamento da malária e de doenças reumáticas até os dias atuais. Entretanto, ao ter acesso às informações de um artigo publicado pelo grupo de pesquisa liderado pelo cientista francês Didier Raoult3 que avaliou o possível reposicionamento da cloroquina (e hidroxicloroquina) para o tratamento da COVID-19, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump anunciou precipitadamente que esse medicamento curava COVID-19. O estudo era muito incipiente e não permitia de forma alguma essa inferência, mas o anúncio fez com que o fármaco desaparecesse por completo das prateleiras das farmácias, prejudicando os que realmente precisavam dele, que são os pacientes portadores de doenças reumáticas, incluindo lúpus eritematoso sistêmico, que fazem uso crônico e contínuo deste medicamento. É o tipo de coisa que acontece quando a ignorância se sobrepõe ao conhecimento ou a Política se sobrepõe à Ciência. Muitos outros estudos já foram publicados desde então envolvendo a cloroquina contra esse vírus.
O reposicionamento de fármacos é uma estratégia interessante, pois utiliza fármacos já aprovados pelas agências regulatórias, ou seja, já passaram pelos estudos clínicos e sua eficácia e segurança já são conhecidas, o que diminui o custo e o tempo necessário para aplicá-los na clínica para outras doenças4. Entretanto, isso envolve técnicas de triagem de moléculas candidatas em larga escala, os chamados high-throughput screening (HTS) e virtual screening (VS), que envolve equipamentos e reagentes de elevado custo, incluindo bibliotecas de moléculas e máquinas automatizadas/robôs. Existem poucos centros de pesquisa no Brasil equipados para isso e, de novo, ressalta-se a importância de melhor investimento em pesquisa de forma continuada, para que em uma situação emergencial tenhamos vários laboratórios prontos a trabalhar de forma adequada e conjunta, em redes. De qualquer forma, os estudos sobre o COVID-19 continuam na velocidade máxima possível em todo o mundo. Não só a cloroquina, mas antibióticos e anti-inflamatórios esteroidais (corticoesteróides), estão sendo testados em estudos clínicos, inclusive no Brasil5. Deve-se atentar ainda que uma vez descoberta um ou alguns fármacos que atuem contra o SARS-CoV-2, é necessária infraestrutura que garanta sua produção em larga escala a fim de atender às necessidades de uma pandemia. Assim, em nota técnica publicada em 27/03/2020 (Nota Informativa No 5/2020-DAF/SCTIE/MS)6, o Ministério da Saúde informou disponibilizará a cloroquina como terapia adjuvante no tratamento das formas graves da COVID-19, apenas em pacientes hospitalizados que não estejam mais respondendo às medidas de suporte preconizadas.
É nesse momento de incerteza gerado pela pandemia do COVID-19 que percebe-se que é mandatório garantir investimentos robustos e contínuos em Ciência & Tecnologia para que estejamos prontos para as próximas batalhas biológicas envolvendo microrganismos que ameaçam a espécie humana, que certamente ocorrerão.
Esse texto foi originalmente publicado na página eletrônica do Programa de Pós-graduação em Biossistemas – UFABC
Fontes:
Fonte da imagem destacada: Freerange Public Domain Archives em Free Arrange Stock
1Pushpakom S, Iorio F, Eyers PA, Escott KJ, Hopper S, Wells A, Doig A, Guilliams T, Latimer J, McNamee C, Norris A, Sanseau P, Cavalla D, Pirmohamed M. (2019) Drug repurposing: progress, challenges and recommendations. Nat Rev Drug Discov., 18(1):41-58. doi: 10.1038/nrd.2018.168.
2Bhattacharjee M (2016). Chemistry of Antibiotics and Related Drugs. [S.l.]: Springer. p. 184. ISBN 9783319407463.
3Colson P, Rolain JM, Lagier JC, Brouqui P, Raoult D. (2020) Chloroquine and hydroxychloroquine as available weapons to fight COVID-19. Int. J. Antimicrob. Agents, 4:105932. doi: 10.1016/j.ijantimicag.2020.105932.
4https://www.theguardian.com/business/2012/nov/27/new-uses-old-drugs-business, acesso em 29/03/2020 às 21:30h.
5https://www.einstein.br/sobre-einstein/imprensa/press-release/coalizao-covid-brasil, acesso em 29/03/2020 às 19:30h.
6https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/30/MS—0014167392—Nota-Informativa.pdf, acesso em 29/03/2020 às 20:00h.