#acessibilidade: A imagem é uma fotografia antiga, em preto e branco, dos pavilhões “Rodrigues Caldas” e “Júlio de Moura” do Hospital Colônia de Barbacena, em MG. Temos, um terreno largo de grama baixa no entorno de algumas construções baixas (os pavilhões) e um céu nublado.
Texto escrito pela colaboradora Ana Paula Mattos Arêas
Honoré de Balzac (1799-1850), um famoso escritor francês do século XIX, crítico dos costumes europeus da nobreza, é considerado, por muitos, como parte do cânone literário mundial, ao lado de autores clássicos como Homero, Platão, Dante Alighieri, William Shakespeare e Jean-Jacques Rousseau. Homem devotado igualmente ao trabalho literário frenético e ao prazer de comer, era descrito frequentemente como um homem de excessos e de pouco autocuidado. Os livros balzaquianos costumam ter um nível de acidez elevado, uma ironia que nem todos os paladares estão dispostos a degustar.
Uma obra aparentemente inofensiva do seu repertório, O tratado da vida elegante: Ensaios sobre a moda e a mesa, fala de etiqueta, vestimentas, culinária e tantas outras coisas que pareceriam dotadas de futilidade, sem importância. Porém, num dado momento, ele envereda por um tema sensível, fala de experimentos realizados em prisioneiros à beira da morte. Correndo um certo risco de anacronismos, ouso dizer que ele se deleita com a possibilidade de prisioneiros aceitarem o estudo como alternativa à morte certa. Esse trecho ressalta essa impressão: “Não posso deixar de observar o quanto é filantrópico utilizar o condenado à morte em vez de guilhotiná-lo brutalmente. Já se emprega a adipocera das aulas de medicina para fazer velas, não devemos parar num caminho tão bonito. Portanto, que os condenados sejam entregues aos cientistas em vez de ser entregues ao carrasco”.
Talvez uma voz dentro de você argumente: “Mas era século XIX. Não dá para comparar com nada mais recente”. Será que não? Será que a natureza humana mudou tanto assim? O texto de Balzac trata de uma população em situação de vulnerabilidade, os prisioneiros. Entretanto, ao longo do tempo, a História nos mostra abusos em outras populações vulneráveis, como crianças, minorias étnicas e indivíduos privados de desempenhar plenamente as faculdades mentais, como os pacientes psiquiátricos.
A obra Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex (1973-), publicado em 2013, mostra a realidade de pacientes psiquiátricos no maior manicômio do Brasil – Hospital Colônia de Barbacena (MG), chamado de Colônia. Nesta instituição, 60 mil pacientes sob seus cuidados faleceram, até o seu fechamento nos anos 1980. Diversos trechos do livro ilustram a tônica desta narrativa, que compara o Colônia a um campo de concentração do regime nazista. Esta analogia é baseada não só na forma de tratamento dos pacientes – descaso, humilhação, eletrochoques frequentes, violência sexual, roubo de bebês que nasciam na Instituição, venda de cadáveres, entre outros absurdos-, mas no fato de muitas pessoas sãs serem enviadas para lá por parentes, por representarem algum tipo de ameaça à ordem social ou familiar. As famílias buscavam tratamento no Colônia para seus entes “desajustados”. Estas pessoas, ao longo dos anos, frequentemente passavam a apresentar algum distúrbio psicológico.
Tudo neste livro parece demonstrar que os médicos, enfermeiros e funcionários do Hospital Colônia se acostumaram com a violência diária, humilhações e maus tratos dos pacientes. Ao que tudo indica, a situação limite neste local fez aflorar o que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) chama de “a banalidade do mal”, princípio descrito no livro Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Nesta obra, Arendt descreve e comenta trechos do julgamento de um burocrata nazista foragido, que foi capturado anos depois na Argentina, vivendo sob um nome falso. Após a captura, o réu foi conduzido a Israel para ser julgado segundo as leis vigentes. Um dos pontos altos da fala do acusado foi dizer que não era um monstro, mas que cumpria ordens. A análise sobre a normalização da violência no regime nazista, feita por Arendt, pode ser vista no trecho a seguir:
“Desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos – ‘Não matarás!’ – que guiam a consciência virtualmente desapareceram. Os poucos ainda capazes de distinguir certo e errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos, e com toda liberdade; não havia regras às quais se conformar, às quais se pudessem conformar os casos particulares com que se defrontavam. Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia, porque não existiam regras para o inaudito.”
Sejam prisioneiros de campos de concentração ou nas prisões francesas do século XIX, ou ainda pacientes psiquiátricos, estas pessoas estavam em situação de vulnerabilidade e sob violação dos seus direitos mais fundamentais, especialmente o de autonomia. As leis e normas vigentes de proteção ao sujeito de pesquisa ou a pacientes possuem diversos itens que tratam de regras rigorosas a serem seguidas, mas mais importante do que a obrigação legal é a consciência moral do pesquisador. Sobre ele repousa absolutamente todo o ônus de garantia de direitos essenciais dos participantes dos estudos, sob o olhar vigilante dos Comitês de Ética em Pesquisa e dos princípios da Bioética.
Fontes:
ANDRADE, Marcelo. A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas. Revista Brasileira de Educação, v. 15 (43), 2010, p: 109-125.
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. — 1a ed. — São Paulo: Geração Editorial, 2013, 256p.
ARÊAS, Ana Paula Mattos. Visão Crítica da Biotecnologia. NTE, 1ª edição, 2016, 152 p. Disponível no link: https://philpapers.org/archive/ARAVCD.pdf. Acesso em 27/ago/2024.
ARENT, Hannah. Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. – — 1a ed. — Companhia das Letras, 1999, 344p.
BALZAC, Honoré de. Tratado da vida elegante: Ensaios sobre a moda e a mesa. Organização, apresentação, tradução e notas de Rosa Freire D’Aguiar. — 1a ed. — São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016, 272p.
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. RESOLUÇÃO Nº 466, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf. Acesso em 27/ago/2024.
Para saber mais:
Hannah Arendt e a banalidade do mal (legendado). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=06jufTlnFbU. Acesso em 27/ago/2024.