A Epopéia de Gilgamesh, composta de doze placas repletas de versos, dos quais aproximadamente dois terços de seu conteúdo foi recuperado, é considerada a obra literária mais antiga da história da humanidade a sobreviver até a atualidade, tendo sua origem estimada há mais de 3500 anos (século XVIII a.C.).
Cada parte das escrituras trata de distintos momentos da vida do rei de Uruk, Gilgamesh, que era dois terços Deus e um terço homem, desde suas primeiras premonições de que encontraria um homem, Enkidu, o qual “amaria como sua esposa” até sua viuvez e o retorno do espírito do seu amado para as profundezas por obra divina.
Quando escrita, de certo quem o fazia não poderia imaginar que vários séculos depois, um amor em formato não heteronormativo como este seria considerado doença (século XIX). Tal “doença” seria tratada com lobotomia e castração química, por exemplo. Ele não poderia imaginar que obras que pregassem este tipo de amor seriam queimadas e destruídas, e que indivíduos morreriam e seriam sentenciados à prisão, ao campo de concentração ou à execução.
Tanto a liberdade de existência como gênero não-cis e/ou não binário, como as liberdades de relacionamentos além da heteronormatividade, eram então muito anteriores ao preconceito difundido principalmente pelas religiões abraâmicas à época e que viraram hábito pelos séculos seguintes até, pasmem, poucas décadas atrás, quando a Associação Americana de Psiquiatria retirou a orientação sexual da lista de transtornos mentais em 1973, seguida pela Associação Americana de Psicologia em 1975.
Na contramão, a Organização Mundial de Saúde incluiu o ‘homossexualismo’ na classificação internacional de doenças de 1977 como uma doença mental retirada apenas na revisão da lista de doenças, em 1990. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a orientação sexual como doença em 1985. Já a China fez o mesmo apenas em 2001 e ainda existem cerca de 70 países (a maioria na África e Ásia) onde é crime não viver na heteronormatividade. Vale ressaltar que ainda em 2017 forças retrógradas do nosso amado Congresso Nacional decidiram pautar sem sucesso (foi arquivado este ano) o reconhecimento da homossexualidade como doença e consequentemente a ‘cura-gay’.
Estas transformações bem recentes e que ainda não atingiram o mundo todo (e nas partes em que avançou, esta pauta ainda sofre ataques como é o caso do Brasil) não vieram por acaso, muito menos de graça. Apesar de ser difícil imaginar, a virada de jogo de uma comunidade marginalizada e a quem muitas vezes só restava a vida dupla, a prostituição e/ou a cadeia, se iniciaria em um bar que frequentavam, o Stonewall Inn.
A faísca se deu quando a polícia de Nova Iorque estava decidida a fazer uma aparição truculenta, como tradicionalmente fazia contra esses grupos. Entretanto, os detentores do monopólio da violência desta vez tomaram uma surra de viado, de drag, de trava, de sapa e mais todos que estavam nas proximidades: a polícia foi colocada para correr naquele 28 de Junho de 1969, 50 anos atrás.
Este clima de insurgência começou nessa data e é para muitos lembrado como dia mais importante da história do movimento (apesar de alguns defenderem o dia que a OMS retirou da lista de doenças seja o dia internacional da causa – 17 de maio). Atos o mais pacíficos possíveis (lembremos que ainda era crime ser ou parecer homossexual nos EUA, então pacifismo era limitado) começaram então, até serem consolidados no que conhecemos hoje como movimento pela igualdade de direitos civis e a Parada do Orgulho LGBT.
Esta última virada de mesa simploriamente resenhada nestas linhas foi reconstruída artisticamente em uma película e pode ser vista com mais detalhes no filme de mesmo nome do bar onde tudo começou Stonewall Inn de 1995, onde dá para sentir um pouco da tensão prévia à reação e a eclosão do que é, hoje, irrefreável: a luta por direitos e liberdades de amar.
Graças ao vigor da diversidade ali presente, pessoas de diversas partes do mundo já podem usufruir de algumas liberdades e continuar lutando pela ampliação de direitos, sem esquecer todas que sangraram e morreram na luta. Este mês de junho é o mês de orgulho LGBT: esta batalha tão justa quanto amarga pelo respeito ao amor. #OAmorVence
Vale lembrar que apenas em Junho do ano passado (dia 15) a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da categoria de “distúrbios mentais” na Classificação Internacional de Doenças (CID). Entretanto não a removeu! Esta mudança além de atrasada em quase 40 anos depois da mesma instituição ter retirado a homossexualidade desta lista, é ainda limitada. Apesar de transexualidade não ser mais distúrbio mental, ela ainda é classificada como “condição relativa à saúde sexual”. Acreditem ou não, estamos em 2019 e isso significa, pelo menos para mim, que há muito trabalho a ser realizado.
Uma versão deste texto foi originalmente publicado no boletim de junho de 2018 do Sindicato dos Trabalhadores da UFABC. O autor, Felipe Antonio, tem publicado em sua conta do Instagram ao longo do mês outros exemplos da difícil luta contra o preconceito.
Fonte da imagem: New York Times
#acessibilidade Uma fotografia de um protesto de 1979 do filme “Cruising”, que foi apresentado no filme “Stonewall Uprising”. Na foto é possível ver um homem com as mãos para cima cercado de policiais.
Fonte da imagem: santafenewmexican.com
#acessibilidade Dois policiais de Nova York agredindo dois rapazes durante um “confronto” em 1970 em Greenwich Village após uma marcha do Gay Power. Na foto é possível ver um homem caído no chão sendo segurado pelos cabelos por um policial e o outro apoiado em um joelho enquanto recebe golpes de cassetete do outro policial nas costas.
Fonte da imagem destacada: newnownext.com