Uma droga pode melhorar sua memória? (V.6, N.5, P.5, 2023)

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Tempo de leitura: 6 minutos
#acessibilidade: na imagem em destaque há uma representação da frente de uma caixa de remédio fictício, chamado “Memória”, o qual teria 200mg e 8 unidades. Ao centro há uma faixa vermelha com os dizeres: “Uso diário e sem prescrição médica”.

Em 2011 foi lançado o filme “Sem limites” que apresenta a vida de um escritor que, ao ingerir um medicamento em teste consegue que o seu cérebro faça coisas incríveis. Outro filme que explorou esse tipo de trama foi “Lucy”, de 2014, com Scarlett Johansson e Morgan Freeman no elenco. Apesar de ambos se basearem em vários mitos, por exemplo, que só usamos 10% do encéfalo, sendo que usamos todo ele, os filmes nos fazem pensar: como seria se pudéssemos aumentar nossas habilidades cognitivas por meio de uma droga?

O nome dado para substâncias que pretendem causar esse aumento é “nootrópicos”. Em inglês a ideia se popularizou por dois nomes: “Cognitive enhancers” e “Smart drugs”, respectivamente, “potenciadores cognitivos” e “drogas da inteligência”. A palavra “Cognitivo” se refere a processos de aprendizagem, elaboração de conhecimento e resolução de tarefas, como a própria palavra já diz, pois sua origem está no latim noscere, “saber, conhecer”, com o prefixo com-, “junto”, aquilo que possui um conhecimento. Por exemplo, a linguagem, o raciocínio lógico e a memória são processos que manifestam e se estruturam com base no conhecimento que temos.

Tudo bem, mas enfim, poderíamos melhorar uma dessas habilidades por meio de uma droga? Que tal a memória? Conseguir lembrar de tudo que já nos aconteceu, de tudo que nos foi ensinado…

Em uma das primeiras cenas do filme “Sem limites” após o uso da substância, o escritor vê uma das pontas de um livro na bolsa de uma mulher com quem está discutindo e se lembra não só de detalhes do livro, mas de comentários sobre ele feitos por uma ex-namorada anos atrás, com precisão. Precisamos entender que é um filme de ficção, logo não teríamos isso na realidade, mas o que poderíamos dizer sobre a melhoria da memória?

Bem, se você quer construir um trem, precisa saber suas partes, certo? Por isso, precisamos primeiro entender um pouco mais o que chamamos de memória. 

Costumamos tratar a memória como uma gaveta ou sistema de “nuvem” onde guardamos informações (textos, fotos, mensagens, etc) e recuperamos quando necessitamos. Porém a nossa memória não funciona assim, ela não tem a pretensão de ser uma reconstrução fiel do que aprendemos. Por exemplo, você deve ter aprendido, ou vai aprender, algo sobre plantas quando estava (ou está) nos ensinos fundamental, médio ou superior, e em diversas disciplinas, como biologia e geografia. Mas, você talvez não se lembre de onde ou quando aprendeu sobre fotossíntese, em detalhes, e se eu tentar te explicar, agora, o conhecimento que você já tem, isso iria influenciar nessa nova memória. Podemos ver, portanto, que a memória tem uma estrutura maleável, que nos permite conectar informações, fazer relações entre conceitos e entendê-los mais profundamente. Assim, precisamos de um lugar onde conexões possam ser formadas, fortalecidas, enfraquecidas se preciso e estabilizadas. No nosso corpo, o órgão perfeito para isso é o nosso encéfalo.

Sim, na neurociência falamos encéfalo e não cérebro, pois este segundo é apenas uma parte do encéfalo.

processamento - Uma droga pode melhorar sua memória? (V.6, N.5, P.5, 2023)

A memória passa por três processos dentro de nosso encéfalo:

  • aquisição: o momento em que absorvemos uma informação;
  • consolidação: quando entendemos que essa informação é importante e a retemos na forma de conexões das células de nosso encéfalo (os neurônios);
  • evocação: o momento em que lembramos daquela informação.

aquisicao consolidacao evocacao - Uma droga pode melhorar sua memória? (V.6, N.5, P.5, 2023)

Uma droga que quisesse melhorar nossa memória teria que agir fortalecendo essas conexões e proporcionando a formação de novas, seja facilitando a aquisição ou evocação das memórias que temos. E é aí que surgem alguns problemas.

Uma mesma molécula que esteja em uma droga pode atuar em benefício de um processo e prejudicar um outro. Um caso desse tipo de situação é a molécula Corticosterona. Foi verificado em testes com ratos que ela aumentou a consolidação mas prejudicou a evocação, ou seja, a informação foi aprendida entretanto não conseguiram lembrar dela.

Além disso, diversas drogas que se propuseram a ser Cognitive Enhancers acabaram apresentando efeitos colaterais mais prejudiciais do que os ganhos observados. Mesmo em “Sem limites” acaba sendo mostrados efeitos adversos do “comprimido mágico”, mostrando que é um fator comum a ser considerado.

Sabemos que os efeitos de um medicamento em um indivíduo não são exatamente os mesmos em outro. Se os organismos são diferentes, podem gerar diferentes respostas. O que pode ser muito efetivo para um, pode não ser para outro, e mesmo que todos fossemos iguais, seria difícil determinar qual a quantidade ótima de seus efeitos. O que costuma acontecer é que tanto dosagens muito pequenas quanto muito grandes de um medicamento acabam tendo um efeito menor do que o esperado. É o que acontece com a cafeína. Uma quantidade pequena ajuda a mantermos nossa atenção, mas quantidades maiores acabam prejudicando o nosso organismo, além de que o nosso corpo se acostuma com a cafeína e começa a sentir menos seus efeitos (saiba mais). É preciso lembrar que ingerir doses altas de qualquer substâncias pode ser tóxico, por isso é sempre importante seguir as orientações de médicas(os) e farmacêuticas(os) que conhecem os detalhes dessas drogas.

curva doseXresposta - Uma droga pode melhorar sua memória? (V.6, N.5, P.5, 2023)

Há outros problemas fora do campo da medicina, da neurociência e da biologia relacionados com uma possível droga que “aumenta a memória”: as questões éticas. Você gostaria de competir em um vestibular contra alguém que usasse essa droga? Seria justo? E você acha que teria dinheiro para comprar uma delas? Elas poderiam ser distribuídas para todas as pessoas? Que tipos de desigualdades sociais elas trariam?

Podemos sonhar com “super remédios”, mas nos esquecemos de nos perguntar: por que seria bom ter uma memória mais desenvolvida? Isso nos tornaria mais felizes? Você gostaria de lembrar de detalhes dos momentos tristes que viveu?

A nossa memória já é capaz de fazer coisas incríveis e basta cuidar dela e estimulá-la. Não deixe de se alimentar bem e lembre-se que uma boa noite de sono é o que consolida as memórias que adquirimos durante o dia. Aprenda coisas novas todos os dias (você pode ler os textos novos do blog toda semana, por exemplo), brinque, escute uma música e dê muitas risadas. Seu encéfalo agradecerá.

 

Para saber mais:

Por que aquele saboroso cafezinho espanta o nosso sono? (V.2, N.12, P.5, 2019)

Nootrópicos e doping mental | Nerdologia – YouTube

Do “Smart Drugs” Work? – YouTube

What Are Nootropics? Are They Going to Make You Smarter? – YouTube

MEMÓRIAS – YouTube

 

Fontes:

Fonte da imagem destacada e das demais imagens: Autor

BADDELEY, A. D.; EYSENCK, M.W.; ANDERSON, M.C. Memória. Artmed, 2011. 471 p.

DE KLOET, E. Ron; OITZL, Melly S.; JOËLS, Marian. Stress and cognition: are corticosteroids good or bad guys?. Trends in neurosciences, v. 22, n. 10, p. 422-426, 1999.

ROOZENDAAL, Benno; MCGAUGH, James L. The memory-modulatory effects of glucocorticoids depend on an intact stria terminalis. Brain research, v. 709, n. 2, p. 243-250, 1996.

ROSE, Steven PR. ‘Smart drugs’: do they work? Are they ethical? Will they be legal?. Nature reviews neuroscience, v. 3, n. 12, p. 975-979, 2002.

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