COVID e Eugenia (V.4, N.7, P.1, 2021)

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Tempo de leitura: 4 minutos
#acessibilidade Imagem da pintura A Redenção de Cam, de Modesto Brocos, pintada em 1895. A obra mostra o embranquecimento da população, com um bebê que é o mais branco, o pai branco ao lado e a mãe, mulata, segurando a criança no colo. No canto esquerdo da tela, a avó de pele escura, com mãos erguidas ao céu.

“Na minha opinião, eu acho que existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas que estão aí pagando seus erros em ad eternum, para sempre em prisão, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”. Essa foi a fala da apresentadora Maria da Graça Xuxa Meneghel, a Xuxa, de 58 anos, em uma live realizada no fim de março pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Não sendo o bastante, ainda completou: “Acho que pelo menos eles serviriam para alguma coisa antes de morrer”.

A fala da Xuxa deixa clara uma opinião de que a utilização em experimentos da população carcerária, no Brasil composta em mais de 65% por negros, é aceitável. Essa é uma visão racista e eugenista, além de ser uma violação dos Direitos Humanos.

Mas o que tudo isso quer dizer?

Começamos na origem do conceito. O antropólogo inglês Francis Galton definiu eugenia como o melhoramento da espécie humana, ou seja, “as forças cegas da seleção natural, como agente propulsor do progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução nos tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral no futuro”.

A proposta consistia na seleção de características físicas e mentais que fossem consideradas ideais para uma sociedade perfeita. Uma das formas de fazer isso foi incentivando a reprodução de pessoas com as características desejadas. Outro jeito foi tirando de cena aquelas pessoas que não se enquadravam nos padrões definidos. Se você pensou no Holocausto e no extermínio de judeus, homosexuais e negros, não é à toa: a eugenia inspirou a Alemanha nazista, mas já estava sendo utilizada nas décadas que antecederam a 2ª Guerra Mundial.

O movimento eugenista impactou também o Brasil. No início do século XX, foram promovidos encontros regionais e nacionais para debater como a “raça” da população poderia ser melhorada. O resultado foram diversas políticas de “higiene e saneamento” populacional que tinham como alvo majoritário a população negra. O “embranquecimento” da população não era apenas bem vistoa, mas também incentivadoa. Apesar do enorme contingente de pessoas negras libertas no país, o Brasil construiu parcerias com alguns países europeus para a vinda de imigrantes brancos para compor a força de trabalho nos anos 1920.

A eugenia é uma pseudociência, ou seja, um tipo de discurso que mimetiza a linguagem científica, sem se apoiar em evidências ou, no caso da eugenia, com um argumento falacioso. Francis Galton se “esqueceu” que, ao medir as proporções e características físicas das pessoas em uma sociedade já estratificada justamente por causa de tais características, a conclusão só poderia ser de que há diferenças físicas nos diferentes extratos sociais. A partir dessa falácia, a eugenia chancelou a seleção social de quem poderia viver e quem deveria morrer.

O mesmo acontece quando alguém defende que o teste das vacinas e cosméticos deve ser feito em um segmento específico da população. “O pensamento eugenista tem como pano de fundo o direito de escolher quem vive e quem morre, uma separação entre os diferentes, algo como uma hierarquia biológica. Ou seja, o mais fraco, mais pobre, a pessoa com deficiência, o preto, o mais vulnerável, em geral, são considerados ‘matáveis’ e podem, então, morrer em troca da manutenção desta hierarquia biológica. Desses pensamentos surgem frases que muitas vezes já ouvimos, como: ‘Bandido bom é bandido morto’ ou ‘Pobre não tem que procriar’ ou ‘Pobre tem que morrer’ e por aí vai. A morte se transforma em um objeto de gestão e de permanência no poder de um grupo que se julga, de alguma forma, superior a outros grupos”, diz Roberta Lemos, doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz).

O racismo é um sistema de opressões que já existia muito antes do Galton inventar a eugenia, mas o disfarce desse racismo em um discurso científico deu força e fortaleceu o racismo estrutural existente. O que conhecemos como racismo científico, portanto, é aquele enraizado nas práticas da ciência. Sejamos ou não cientistas, é nosso papel, na busca por uma sociedade mais justa e igualitária, combater toda ciência que promova desigualdade, preconceito e discriminação.

Fontes:

Fonte da imagem destacada: Modesto Brocos Gómez, Public domain, via Wikimedia Commons

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