#acessibilidade: A imagem contém vários dados de seis faces espalhados sobre uma superfície rosa, distribuídos de maneira aleatória
Texto pelo colaborador João Vitor Lino
Qual decisão é melhor a se tomar diante de duas opções: apostar na loteria pagando R$ 5,00 para concorrer a um prêmio de R$ 5.000,00 , tendo uma probabilidade de 0.02% de ganho, ou apostar apenas R$ 3,00 reais concorrendo ao mesmo prêmio, mas com uma probabilidade de 0.01% de ganho? No primeiro caso, vemos que nosso investimento é maior, já que estamos desembolsando 2 reais a mais para participar. No entanto, a probabilidade de ganho é duas vezes maior do que na segunda opção. Por outro lado, o custo da segunda opção é mais baixo, mas a probabilidade de vitória é a metade. Diante disso, surge a dúvida: vale mais a pena arriscar mais por uma chance maior, ou gastar menos, aceitando uma menor probabilidade de sucesso?
Apesar do caso envolvendo loterias parecer pouco importante para algumas pessoas, é sabido que usos como esse do conceito de probabilidade no tratamento da incerteza são frequentes tanto na vida cotidiana quanto na atividade científica e filosófica. De fato, a busca por compreender e quantificar a incerteza permeia diversas áreas do conhecimento, o que historicamente levou ao desenvolvimento de ferramentas que reduzissem, ou ao menos estimassem, a falta de previsibilidade sobre fenômenos variados. A mais importante e amplamente conhecida dessas ferramentas é o cálculo de probabilidades.
Probabilidades são frequentemente empregadas em casos onde modelos entendidos como “determinísticos” não dão conta — isto é, aqueles onde podemos determinar, de forma completa e precisa, a ocorrência de um evento baseado no conhecimento de um conjunto de condições iniciais. Diferentemente de previsões determinísticas, previsões probabilísticas lidam diretamente com nossa incerteza quanto aos fenômenos. Esta incerteza, seja ela proveniente de uma limitação de conhecimento ou de uma aleatoriedade intrínseca, nos leva a trabalhar com resultados “possíveis” ao invés de “certos”, sendo que algum conjunto de resultados possíveis pode ser mais “provável” do que outros.
Neste contexto, o emprego das probabilidades na ciência e no cotidiano traz à tona uma série de preocupações filosóficas, seja no que tange ao modo como essas probabilidades devem ser interpretadas, de que modo elas se relacionam às noções tradicionais de conhecimento ou ao tratamento ético de riscos na vida real. Diante disso, o livro “A loteria na filosofia: probabilidade, risco e incerteza”, escrito por Renato Rodrigues Kinouchi, professor de epistemologia e filosofia da ciência na Universidade Federal do ABC, é um lançamento recente que atende à demanda de todos aqueles que visam estudar mais sobre o tema. Publicada pela Associação Filosófica Scientiae Studia, A Loteria introduz o leitor aos principais conceitos e problemáticas relevantes ao estudo da probabilidade, do risco e da incerteza na filosofia contemporânea.

O texto se divide em 4 partes. A primeira parte (Fundamentos) expõe um arcabouço histórico geral e introduz o leitor às noções elementares que configuram a caixa de ferramentas do probabilista, tais como a definição matemática de probabilidade, de probabilidade condicional, a Regra de Bayes, o Problema de Monty Hall, variáveis aleatórias, a Lei dos Grandes Números e o Teorema do Limite Central. A segunda parte (Decisões) se volta às questões envolvendo uma área conhecida como Teoria da Decisão, conceituando noções de utilidade, valor esperado e riscos, discutindo casos elucidativos como a aposta de Pascal e questões éticas envolvendo veículos autônomos.
A terceira parte (Interpretações) investiga as interpretações existentes do conceito de probabilidade. Sobre essa parte, que constitui uma das discussões centrais em epistemologia contemporânea, podemos nos valer de um exemplo: quando dizemos que uma certa vacina possui probabilidade de 92% de eficácia, estamos expressando um fato objetivo sobre o mundo, segundo o qual essa substância possui uma disposição natural de proteger 92% das pessoas que a recebem? Ou estamos apenas refletindo nosso grau de crença baseado no conhecimento que temos — que, dada sua limitação, nos impede de fornecer uma previsão determinística equivalente? Ou, ademais, devemos entender essa probabilidade como algo que se aplica apenas a séries longas e repetidas de casos — como os resultados de ensaios clínicos em larga escala —, ou ela pode ser legitimamente atribuída a um evento singular e irrepetível, como a aplicação da vacina em uma única pessoa? A resposta a perguntas como essa não é nada trivial e, de certo modo, as principais interpretações fornecidas à probabilidade na filosofia são conflitantes entre si. Por isso, a escolha de uma ou outra interpretação não é apenas uma questão técnica, pois esta envolve compromissos filosóficos distintos quanto à natureza da incerteza, do conhecimento e da própria atividade científica. O livro então faz uma exposição das 5 teorias de interpretação mais influentes, a saber: a interpretação clássica, a frequencista, a propensão, a lógica e a subjetivista.
Por fim, a última parte (Controvérsias) finaliza a obra explorando controvérsias em filosofia envolvendo o problema da indução, risco indutivo e problemas pertinentes ao nosso século que tangem à filosofia da tecnologia. Kinouchi assim dialoga com diferentes temas em uma escrita acessível, e seu texto consegue atingir uma finalidade múltipla: fornecer uma introdução de alta inteligibilidade ao público geral não-iniciado no tema e, ao mesmo tempo, fornecer um bom material de pesquisa frente à (até então) carência de referências semelhantes em língua portuguesa. Diferentemente de outros recursos já produzidos que, em sua maioria, tratam da probabilidade e da incerteza apenas naquilo que concerne à epistemologia e a filosofia da ciência, A Loteria não se resume a esse tratamento e analisa a probabilidade sob diferentes preocupações e a toma como aspecto essencial de uma filosofia que se adeque, de fato, às nossas vidas. Mais precisamente: “[a] vida real, que é incerta, perigosa e arriscada” (Kinouchi, 2025, p. 15).
Fontes:
A loteria na filosofia: probabilidade, risco e incerteza, de Renato Rodrigues Kinouchi (2025). Disponível em: https://www.scientiaestudia.org.br/publicacoes/colecao/kinouchi-a-loteria-na-filosofia.html.
Para saber mais:
Acaso, probabilidade e indução: escritos selecionados, de Charles S. Peirce. Disponível em: https://scientiaestudia.org.br/publicacoes/colecao/acaso-probabilidade-e-inducao-peirce-2023.html
Outros divulgadores: