#acessibilidade Foto da flor Papaver somniferum (Papoila-dormideira), com quatro grandes pétalas de cor violeta e cerca de 10 centímetros de diâmetro.
Texto escrito pela colaboradora Daniele Araújo
Para continuar nossa série “Todo remédio é uma droga”, falaremos hoje sobre o ópio e duas moléculas bastante conhecidas: a morfina e a heroína.
A História Antiga nos conta detalhes importantes sobre as primeiras terapias farmacológicas utilizadas pelo homem. Entre elas estão os relatos de preparações a base de ópio e seus usos terapêuticos. Vocês lembram quando falamos sobre o Papiro de Ébers? Pois é, nesse documento há a primeira descrição de uma mistura de ópio e outros compostos utilizados para induzir sono em crianças (efeito hipnótico), o que muitos anos mais tarde, nomearia a primeira molécula extraída dessa resina, a morfina, em homenagem a Morfeu, deus grego do sono e sonhos.
Mas afinal, o que é ópio?
A palavra ópio faz referência à seiva (suco de aspecto leitoso) do fruto de uma planta chamada Papaver somniferum (originária do Oriente Médio e difundida para outras regiões como América do Sul e Europa). Quando recém-extraído, o ópio apresenta aspecto líquido, mas após contato com o ar essa seiva se solidifica e adquire coloração azul-arroxeada, sendo utilizada para preparação de extratos* ou para inalação (fumo). Os efeitos do ópio como indutor de sono, redutor da tosse e sua capacidade de tratar disenterias tornaram-no popular por muitos anos, mesmo após relatos de efeitos como narcose (sono excessivo e perda de consciência) e alucinações, sendo esses alguns resultados da inalação dos produtos de sua queima nas famosas casas de ópio europeias, durante o século XVIII.
No entanto, somente no século XIX (1803) o farmacêutico alemão Friedrich W. Sertmann isolou a morfina (Figura 1), o primeiro alcaloide (grupos de substâncias químicas extraídas de plantas, com caráter básico e que apresentam um ou mais átomos de nitrogênio em sua estrutura) natural extraído do ópio. Assim, estávamos diante do primeiro fármaco derivado do ópio! Seus efeitos biológicos, decorrentes da interação com proteínas receptoras localizadas no sistema nervoso central (descritos estruturalmente apenas em 1990, após longas décadas de estudos farmacológicos) incluem potente alívio da dor (analgesia), náuseas, euforia, vômitos e supressão da tosse (efeito antitussígeno), mas também alto potencial de dependência.
Nos anos seguintes, a busca por analgésicos e antitussígenos mais eficazes levou à síntese de uma nova molécula a partir da morfina, denominada diacetilmorfina ou heroína (em 1894, Figura 1), justificando a semelhança estrutural entre as duas. De fato, a inserção de dois radicais acetis na estrutura química da molécula da morfina (detalhe em vermelho, figura 1) gerou a heroína e aumentou a afinidade da molécula pela interação com o local de ação. No entanto, a severa depressão respiratória, causando óbitos, e o alto potencial de abuso (levando às dependências física e psíquica mais potente e rápida quando comparada à morfina), direcionaram a sua nova denominação de fármaco para droga de abuso, bastante relatada até os dias de hoje e associada a óbitos por overdose. A heroína, como fármaco, foi comercializada somente até o final do século XIX e hoje sua síntese, produção e comercialização são proibidas.
A morfina ainda é um dos analgésicos de escolha para o tratamento de dores de severa intensidade e de longa duração (como aquelas associadas ao câncer, por exemplo), mesmo com severos riscos como dependência física, psíquica e depressão respiratória. Atualmente, o uso de moléculas derivadas do ópio para o bem-estar humano, com pouco ou nenhum efeito negativo, ainda continua a ser um desafio significativo para cientistas e profissionais de saúde em geral.
*Para quem tem curiosidade, a História relata (em 1680) o uso de uma bebida denominada láudano que nada mais é do que uma mistura de ópio, vinho, whisky e especiarias.
Fontes:
Fonte da imagem destacada: Louise Joly, one half of AtelierJoly [CC BY-SA 1.0], from Wikimedia Commons.
Para saber mais:
Michael J. Brownstein. A brief history of opiates, opioid peptides, and opioid receptors. Proc. Natl. Acad. Sci. USA. vol. 90, pp. 5391-5393, 1993.
S.L. Cruz, V. Granados-Soto. Opioids and Opiates: Pharmacology, Abuse and Addiction. In: Neuroscience in the 21st Century. D.W. Pfaff, N.D. Volkow (eds.). DOI 10.1007/978-1-4614-6434-1_156-1.
Jones MR, Viswanath O, Peck J, Kaye AD, Gill JS, Simopoulos TT. A Brief History of the Opioid Epidemic and Strategies for Pain Medicine. Pain Ther. 2018 Jun;7(1):13-21.