#acessibilidade: Imagem de um bule de vidro com um chá alaranjado, em cima de uma tábua de madeira, ao lado de um de copo de chá vazio, rodeados por cinco recipientes de cerâmica com diferentes especiarias.
Texto escrito por Calvin Q. Cabello, Giovana B. Bertazzo e Lucas M. Bosquetti
Você já se perguntou a quanto tempo os seres humanos usam chás e extratos de plantas para tratar enfermidades? O conhecimento sobre o uso de plantas medicinais tem sido transmitido pela tradição popular, e a utilização das plantas em tratamentos clínicos data de mais de 3500 anos. O registro considerado mais antigo é o papiro de Ebers, um tratado médico escrito no Egito antigo por volta de 1550 a.C., onde são descritas cerca de 700 drogas diferentes, incluindo extratos de plantas, metais (chumbo e cobre) e veneno de animais.
Nos últimos dois séculos, no entanto, o uso de extratos e chás de plantas passou a perder espaço para medicamentos comerciais, muitas vezes de compostos isolados das plantas ou derivados destes. Um exemplo disso é o ópio, um preparado extraído dos bulbos da papoula, Papaver somniferum, conhecido desde a época dos Sumérios (4000 a.C.), por suas propriedades soníferas e analgésicas. Foi no início do século XIX, que o principal composto responsável por essas propriedades foi isolado, a morfina. Esse feito é creditado a dois pesquisadores, no ano de 1804, de forma separada, o francês Armand Séguin e o alemão Friedrich Sertürner. A morfina rapidamente se tornaria um importante medicamento no tratamento de dores intensas e realização de cirurgias, ajudando a salvar milhares de vidas nas muitas guerras que aconteceriam nos séculos XIX e XX, mas também causando a dependência química em muitos soldados que a utilizavam para tratar as dores.
Outro marco importante para o desenvolvimento dos fármacos a partir de produtos naturais de plantas foi o descobrimento dos salicilatos obtidos de Salix alba, a árvore de salgueiro. A casca do salgueiro era utilizada na Europa para o tratamento de dores desde a Grécia antiga. Em 1828, no Instituto de Farmacologia de Munique, Johann A. Buchner isolou uma pequena quantidade de salicina, o princípio ativo da planta, e, em 1887, Felix Hofmann desenvolveu um processo de produção do ácido acetil-salicílico (AAS), que não causava os problemas estomacais gerados pelo princípio ativo da planta, mas mantendo a propriedade analgésica desejada. Hofmann trabalhava na Bayer, que lançou o AAS no mercado a partir de 1899 sob o nome de Aspirina, medicamento de enorme sucesso, utilizado em larga escala até os dias de hoje, tendo um valor de mercado de cerca de 2,3 bilhões de dólares em 2022. Após mais de 100 anos de sua descoberta, o AAS continua sendo alvo de inúmeras pesquisas sobre sua aplicação terapêutica como analgésico e anti-inflamatório, atuando no controle da febre, na artrite reumatóide e na inibição da agregação plaquetária, e seu mecanismo de ação ainda não foi completamente esclarecido.
A partir do início do século XX, com avanços em técnicas de separação e caracterização dos compostos, foi possível o isolamento e identificação das substâncias por trás dos efeitos terapêuticos de diversas outras plantas. Então se já sabemos os princípios ativos de cada planta e sabemos fabricá-los e fazer comprimidos, não há mais porque tomar chás e xaropes, certo? Bom, nem sempre.
Existem muitos prós e contras quando comparamos extratos de plantas com o seu princípio ativo isolado, a começar pelo fato de que nem sempre é apenas o princípio ativo que possui uma ação terapêutica em uma planta. Muitos outros compostos presentes em seu extrato podem possuir um efeito de sinergia*, auxiliando na ação do princípio ativo e até mesmo diminuindo efeitos colaterais que a substância pura pode causar. Outros dois pontos que podem pesar na balança a favor dos extratos naturais são o preço – afinal, isolar compostos é um processo caro, e por isso os medicamentos costumam ser bem mais caros que um tratamento natural – e o fato de que pílulas costumam ter uma concentração muito maior do princípio ativo do que o extrato da planta, o que os torna ideais para o tratamento de enfermidades sérias, mas também acarreta em mais efeitos colaterais e uma chance maior de causar dependência. Quando acordamos cedo pela manhã e precisamos estar bem despertos para o trabalho, parece muito mais lógico e saudável tomar uma boa xícara de café do que uma pílula de cafeína, não é mesmo? Afinal, porque não estender a mesma lógica para o tratamento de “enfermidades simples”, como uma tosse ou congestionamento nasal? Voltemos então para o guaco que nossos avós tanto recomendavam!
Um fitoterápico rotineiramente utilizado é o guaco (Mikania glomerata), uma planta trepadeira, nativa da região sul, sudeste e parte do nordeste do Brasil. Possui muitas propriedades terapêuticas, como antitérmica, broncodilatadora, antimicrobiana e antigripal, sendo empregado como coadjuvante no tratamento de asma, bronquite e combate à tosse. Os dois principais compostos encontrados no Guaco são a cumarina e o ácido caurenóico, sendo considerados os responsáveis por suas ações farmacológicas e terapêuticas para o tratamento de doenças do trato respiratório. Sua eficácia terapêutica foi devidamente validada através de uma série de estudos, estabelecendo o Guaco como um excelente fitoterápico no enfrentamento da asma e da bronquite.
Atualmente é muito comum encontrar o xarope de guaco pronto em farmácias, mas em casas de ervas suas folhas para chá são quase que presença obrigatória, sendo mais baratas, além de produzir um chá muito saboroso. Por isso, da próxima vez que tiver com aquela tosse chata ou com o nariz entupido, porque não evitar aqueles remédios caros – e que são extremamente viciantes e podem trazer efeitos colaterais – e tentar resolver com um bom e velho cházinho? Não é crendice popular, é ciência!
*Sinergia: interação positiva entre diferentes compostos que gera um efeito combinado mais potente ou benéfico do que a simples combinação de suas contribuições individuais.
Fontes:
Czelusniak, K. E., Brocco, A., Pereira, D. F., & Freitas, G. B. L. (2012). Farmacobotânica, fitoquímica e farmacologia do Guaco: revisão considerando Mikania glomerata Sprengel e Mikania laevigata Schulyz Bip. ex Baker. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, 14(2), 400–409. Disponível emhttps://www.scielo.br/j/rbpm/a/NdSkNbYh6JxZp95LwvGJwvb.
Viegas Jr, C., Bolzani, V. da S., & Barreiro, E. J. (2006). Os produtos naturais e a química medicinal moderna. Química Nova, 29(2), 326–337. Disponível emhttps://www.scielo.br/j/qn/a/gQqYVTzykDtcSVtKvYDxWTP/.
BANÓSKI, S. A. Ervas medicinais. 2010.
Soares, A. K. A., Carmo, G. C., Quental, D. P., Nascimento, D. F., Bezerra, F. A. F., Moraes, M. O., & Moraes, M. E. A. (2006). Avaliação da segurança clínica de um fitoterápico contendo Mikania glomerata, Grindelia robusta, Copaifera officinalis, Myroxylon toluifera, Nasturtium officinale, própolis e mel em voluntários saudáveis. Revista Brasileira de Farmacognosia, 16(4), 447–454. doi:10.1590/s0102-695×2006000400002.
Newman DJ, Cragg GM. Natural Products as Sources of New Drugs over the Nearly Four Decades from 01/1981 to 09/2019. J Nat Prod. 2020 Mar 27;83(3):770-803. doi: 10.1021/acs.jnatprod.9b01285.
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Hospital Oswaldo Cruz. Descongestionantes nasais causam dependência após poucos dias de uso, conheça os riscos. Disponível em: <https://www.hospitaloswaldocruz.org.br/imprensa/noticias/descongestionantes-nasais-causam-dependencia-apos-poucos-dias-de-uso-conheca-os-riscos/>.
Para saber mais:
Brazil. Departamento de Atenção Básica., Cadernos de Atenção Básica : programa saúde da família. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Departamento de Atenção Básica, 2000.
Outros divulgadores:
Divisão de Produtos Naturais – SBQ. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/c/Divis%C3%A3odeProdutosNaturaisSBQ.