#acessibilidade: Imagem em preto e branco de um contador mecânico marcando “000.”, com números grandes e fundo escuro. Representa o conceito de início, vazio ou reinício.
Texto pela colaboradora Giovanna Torres dos Santos
Você já parou para pensar como o nada pode ser alguma coisa? Parece contraditório, quase um paradoxo, mas é exatamente isso que o número zero representa. Ele é o símbolo do vazio – e, ao mesmo tempo, uma das maiores invenções da humanidade. Sem o zero, não teríamos computadores, matemática moderna ou até mesmo a possibilidade de contar direito.
O zero representa a ausência de quantidade. Se você tem zero maçãs, não tem maçã nenhuma. Mas ele não é apenas a ausência – ele é um símbolo que representa essa ausência. E isso faz toda a diferença. É como dar forma ao invisível. O zero permite que a ausência seja nomeada, registrada e manipulada.
Parece simples, mas reconhecer o “nada” como algo que pode ser representado e usado exigiu uma revolução de pensamento. Afinal, como algo que não existe pode ser tratado como se existisse?
Durante muito tempo, o mundo viveu sem ele. Civilizações como os romanos, os egípcios e os gregos não utilizavam esse conceito. Seus sistemas de numeração eram extremamente limitados – e fazer contas complexas era um desafio. Isso porque a ideia de “nada” era desconfortável: se não há nada, por que representá-lo?
Para os gregos antigos, por exemplo, a existência estava ligada à substância. O vazio era uma espécie de não-ser, algo próximo ao caos, à ausência total do mundo. Representar isso como um número era quase herético.
Mas algumas culturas começaram a flertar com a ideia. Os babilônios usavam um espaço em branco para indicar a ausência de valor em uma posição, como fazer com o zero no “100”. Já os maias criaram um símbolo específico para o zero, mas ele era usado mais como marcador de tempo do que como número com operações próprias.

Disponível em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cero_maya.svg, acesso em 30/06/2025.
Foi na Índia, por volta do século V, que o zero finalmente ganhou força. Matemáticos como Brahmagupta começaram a tratar o zero não apenas como um símbolo, mas como um número com regras próprias. Pela primeira vez, o nada pôde ser somado, subtraído e até multiplicado – embora a divisão por zero causasse dores de cabeça, como causa até hoje.
Esse passo foi tão importante que muitos historiadores da matemática consideram o zero uma das maiores invenções da história humana. Sem ele, não teríamos o sistema decimal, nem a álgebra como conhecemos, nem os algoritmos que processam dados em nossos celulares e computadores.
O conceito se espalhou para o mundo árabe – que foi o responsável por traduzir e preservar muito do conhecimento indiano – e depois chegou à Europa. Mas levou séculos para que o zero fosse plenamente aceito no Ocidente.
Com o zero, surgiram novas possibilidades: contas mais simples, uma posição clara para cada valor numérico (como a diferença entre 1, 10 e 100), e mais tarde, a base de toda computação moderna – computadores funcionam em binário, isto é, depende diretamente dos dígitos 0 e 1. O zero, nesse contexto, não significa só “nada”, mas “desligado”, “falso” ou “não”.
Como observa o artigo Much Ado About Zero, sem um conceito estruturado de “nada”, não teríamos sequer como representar corretamente um número como “100”. O zero é o alicerce invisível que dá ordem a todos os outros números.
O zero também é fascinante porque desafia definições simples. O filósofo e matemático Peter Harremoes propôs que o zero é natural como número cardinal, ou seja, quando usamos números para contar quantidades, o zero faz sentido: “nenhuma maçã”. Mas ele não é natural como número ordinal – ninguém fica em “zero lugar” numa corrida. Essas distinções mostram como o zero é cheio de nuances, mesmo sendo “nada”.
Mais do que um número, o zero é um conceito filosófico poderoso. Ele nos obriga a pensar sobre o que significa a existência, o vazio, e até os limites do pensamento humano. É o ponto de partida do nada que, paradoxalmente, abre caminho para o tudo.
Na física, o zero aparece como ponto de referência absoluto: temperatura correspondente ao zero absoluto, energia potencial zero, ponto zero de uma escala. Na filosofia oriental, o vazio não é ausência, mas plenitude em potencial – algo que está pronto para se tornar. Na arte, no design e na música, o silêncio e o espaço em branco – o “zero” da expressão – são tão importantes quanto os sons ou formas.
O zero também nos ensina uma lição de humildade: nem sempre o que é invisível deixa de ser essencial. Às vezes, é o nada que estrutura o todo.
Por isso, da próxima vez que vir um simples “0”, lembre-se de que por trás dele há uma das ideias mais revolucionárias da humanidade – a capacidade de transformar o nada em algo, e dar sentido ao vazio. Porque, no fim das contas, o zero não é ausência de significado. Ele é o significado da ausência.
Referências
COSTA, Caroline Ferreira; BARROS, Geovane dos Santos. A origem do zero – o nada que existe. Revista Científica Multidisciplinar RECIMA21, v. 3, n. 11, p. 1–15, nov. 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/365168665_A_ORIGEM_DO_ZERO_-_O_NADA_QUE_EXISTE.
SILVA, Maria Aparecida Moreira da. A origem do zero. 2010. 130 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/handle/handle/11332.
BHATTACHARYA, Ananyo. Much Ado About Zero. arXiv, 2016. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1601.05983.
HARREMOËS, Peter. Is zero a natural number? arXiv, 2011. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1102.0418.
VIEIRA, Davi Rodrigues; SILVA, Rafael Ruan da. História do número zero. Revista Tecnologia e Humanismo, v. 1, n. 1, p. 26–32, 2021. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/rth/article/view/6206.
WIKIMEDIA COMMONS. Cero maya. [Imagem digital]. Disponível em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cero_maya.svg.
Para saber mais:
A Importância da filosofia da ciência
A história do número zero – https://www.obaricentrodamente.com/2012/08/a-historia-do-numero-zero.html
GALILEU. Como a criação do zero revolucionou a matemática. Revista Galileu, 2025. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/sociedade/curiosidade/noticia/2025/02/como-a-criacao-do-zero-revolucionou-a-matematica.ghtml.
MATEMÁTICA PARA FILÓSOFOS. Mais quatrocentos anos de antiguidade para o Zero? Matemática para Filósofos, 1 maio 2019. Disponível em: https://www.matematicaparafilosofos.pt/mais-quatrocentos-anos-de-antiguidade-para-o-zero/
Outros divulgadores:
Como surgiu o ZERO na matemática, Universo Narrado
O NADA EXISTE? Uma Breve História do Vazio, Marcelo Gleiser