Polinização do cipó-milome: parece planta carnívora, mas não é (V.7, N.3, P.3, 2024)

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Tempo de leitura: 5 minutos
#acessibilidade: Imagem de uma flor da espécie Aristolochia gracilipenduculata, a flor apresenta uma estrutura oca na base, de cor branco com máculas roxas, e no ápice apresenta projeções roxas de tamanhos variados

Texto escrito pelos colaboradores Joelcio Freitas, Elton John de Lírio e André Vitor Suzuki

Plantas do gênero Aristolochia (Aristolochiaceae), conhecidas como papo-de-peru, cipó-milome ou jarrinho, crescem principalmente como trepadeiras, e no Brasil são representadas por 83 espécies (leia também “Cipo-milome: planta faz mal a saúde, mas pode trazer proteção a outros animais“). As flores de cipó-milome são um espetáculo à parte no mundo botânico, com sua forma peculiar que lembra um jarro ou bule (Fig. 1). Esta arquitetura floral única é dividida em três partes principais: o utrículo, que se assemelha ao corpo do jarro, o tubo, que se estende a partir do utrículo, e o limbo, que se assemelha à boca do jarro e é frequentemente adornado com manchas escuras e estruturas alongadas (Fig. 1). Mas a beleza da flor de cipó-milome não se limita ao exterior. No interior da flor, local onde ocorre a polinização, ela exibe uma série de características impressionantes. As paredes internas são frequentemente pigmentadas e abrigam uma variedade de estruturas, incluindo glândulas de aroma e néctar, bem como uma infinidade de tricomas – pequenos pelos que podem dar à flor uma aparência aveludada (Fig. 2).

A morfologia única da flor de cipó-milome não é apenas decorativa, desempenha também um mecanismo muito interessante na atração e recepção dos polinizadores. O utrículo (Fig. 1), que forma a base da flor, abriga a estrutura reprodutiva da planta e tem a função adicional de ‘aprisionar’ os insetos durante o processo de polinização. O tubo (Fig. 1), a estrutura alongada que conecta o exterior com as estruturas reprodutivas da flor, tem a principal função de guiar os polinizadores para dentro do utrículo. Ele facilita a entrada dos polinizadores, graças à orientação dos tricomas para baixo, no entanto, essa orientação dos tricomas dificulta a saída, garantindo assim que os polinizadores entrem em contato com as estruturas reprodutivas da planta.

As flores de cipó-milome são hermafroditas (possuem estruturas masculinas e femininas na mesma flor) e são protogínicas, um termo científico que significa que as estruturas sexuais femininas amadurecem antes das masculinas. Quando os polinizadores visitam a flor, eles são temporariamente aprisionados dentro dela, isso fornece o tempo necessário para que suas estruturas sexuais masculinas amadureçam e liberem os grãos de pólen. Se a parte feminina está receptiva e os insetos que entraram na flor estão “sujos” com pólen de outra flor da mesma espécie, o inseto poliniza a flor na qual se encontra no momento. Este processo pode durar de algumas horas a vários dias. Mas depois que acontece, os tricomas do tubo que antes eram rígidos e impediam a saída do polinizador, ficam murchos e, com isso, liberam a passagem e o polinizador consegue sair carregando os grãos de pólen para outra flor (Fig. 3).

Outro aspecto muito importante da evolução dessa planta é a estratégia para atrair seu polinizador por meio de odor característico e sua coloração. Os cipó-milome são conhecidos pelo forte odor que se assemelha ao de carne podre. São polinizados por moscas que se alimentam de matéria orgânica em decomposição, chamadas saprófitas. Sua coloração também varia de tons escuros de roxo e vermelho e tons mais esbranquiçados de verde e amarelo que se assemelham às cores de carne e de gordura, indicando uma possível relação evolutiva entre coloração e odor.

Essas características levaram muitos a considerar os cipó-milome como plantas carnívoras. No entanto, com base em nosso conhecimento atual, podemos afirmar que não são. Nas plantas carnívoras as folhas são modificadas formando estruturas que se assemelham a jarros e armadilhas, estas modificações permitem que elas possam capturar e digerir insetos para absorver seus nutrientes (lembra do texto “Planta carnívora faz coco?”). Nos cipós-milome, a estrutura em forma de jarro não é uma folha, mas sim uma flor. As flores são estruturas reprodutivas, onde são produzidos os grãos de pólen e onde ocorre a fecundação e o desenvolvimento do embrião/semente (ovário). De maneira que, depois de visitar uma dessas flores, apesar de ficar aprisionado por um tempo, a intenção é que os polinizadores se mantenham vivos, pois é fundamental para a planta que esses insetos visitem outras flores da mesma espécie para que a polinização cruzada aconteça. Assim, a forma de jarro das flores de cipó-milome é uma adaptação para a reprodução, e nas plantas carnívoras, uma adaptação para a nutrição. Nesse contexto, os insetos são colaboradores cruciais, sendo agentes indispensáveis para a efetivação do processo reprodutivo das plantas. Não só dos cipós-milome, mas de muitas plantas que produzimos. Se quiser saber mais sobre a importância dos insetos, leia “O que está acontecendo com os insetos” e “Um mundo sem insetos seria bom?“.

flor e jarro - Polinização do cipó-milome: parece planta carnívora, mas não é (V.7, N.3, P.3, 2024)
Figura 1. À esquerda, flor de Aristolochia elegans Mast. (utr [utrículo], tub [tubo] e lim [limbo]. À direita, um jarro que se assemelha morfologicamente às espécies de cipó-milome.
#acessibilidade: Do lado esquerdo, uma imagem de uma flor grande com formato de jarro, de coloração bege e roxo e com folhas verdes; do lado direito, uma imagem de um jarro, para compararmos os formatos.
flor cortada - Polinização do cipó-milome: parece planta carnívora, mas não é (V.7, N.3, P.3, 2024)
Figura 2. Tricomas internos no utrículo de flores de Aristolochia elegans Mast.
#acessibilidade: Imagem de uma flor cortada longitudinalmente, coberta internamente de tricomas e com a parte reprodutiva bissexuada na base.
tubo interior flores - Polinização do cipó-milome: parece planta carnívora, mas não é (V.7, N.3, P.3, 2024)
Figura 3. Tricomas internos do tubo de flores de Aristolochia hypoglauca Kuhlm.
#acessibilidade: Imagem do interior do tubo de uma espécie de cipó-milome, do lado esquerdo mostrando os tricomas túrgidos e do lado direito mostrando os tricomas murchos.

Fontes:

Fonte da imagem destacada: Joelcio Freitas

Fonte Figura 1: Joelcio Freitas / Richard Iwaki (unsplash.com)

Fonte Figura 2: Joelcio Freitas

Fonte Figura 3: Joelcio Freitas

FREITAS, J.; ALVES-ARAÚJO, A. Flora do Espírito Santo: Aristolochiaceae. Rodriguésia, v. 68, p. 1505-1539, 2017

FREITAS, J.; LÍRIO, E. J.; BARROS, F.; GONZÁLEZ, F. 2020. Aristolochiaceae in Flora do Brasil 2020. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. https://floradobrasil2020.jbrj.gov.br/FB54

GONZÁLEZ, F.; PABÓN-MORA, N. Trickery flowers: the extraordinary chemical mimicry of Aristolochia to accomplish deception to its pollinators. New Phytologist, v. 206, n. 1, p. 10-13, 2015

HOEHNE, F.C. Aristolochiaceas. Instituto de Botânica, São Paulo. Flora Brasílica 15: 1-141, t. 1-123, 1942

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