acessibilidade: sob um fundo na cor cinza se lê, em letras azuis, vinho e amarelas: “Quer que o broto cresça. Regue a planta”. Na imagem, a figura de uma mãe, segurando seu filho e ela sendo aguada por um regador laranja. Entre o corpo do filho e o coração da mãe, existe uma conexão física, sendo representada por artérias vermelhas que se entrelaçam e formam pequenos corações.
Texto escrito por Artur F. Keppler
Tenho consciência de que meu texto não se aplica ADEQUADAMENTE à famílias geridas por mães solo ou onde a pobreza é extrema. Mesmo com o apoio da comunidade, amigos e parentes, a vulnerabilidade emocional é grande nestes cenários. Me solidarizo com o sofrer destas mães, pais e filhos. Falo aqui para um público que conheço, do qual faço parte. Pessoas privilegiadas pelo teto, dinheiro e alimento que não faltam. Privilégio que vai além dos bens materiais. Temos a oportunidade de sair mais cedo do trabalho, para levar nossos filhos ao médico, para pegá-los na escola, para ir ao mercado enquanto aquela que amamenta nosso filho descansa, passeia ou vai à academia. Esse texto é para aqueles que são chefes, gerenciam equipes; para aqueles que podem ler este texto com calma e são corresponsáveis pelo cuidar dos filhos, tanto na amamentação, como nas etapas que se seguem.
Vamos lá?
Um mineral é gerado e talvez “cresça” organizadamente por conta do ocasional encontro entre diferentes mantos terrestres de lenta movimentação.[1] As plantas e os fungos crescem e se replicam, seguindo a natureza de seus ciclos de vida. E os animais, em suas diferentes espécies, possuem uma camada extra de habilidade: a consciência do que é estar vivo, ao se reproduzirem e cuidarem de sua prole, assim transmitindo seus genes. E o que distingue os seres humanos do reino animal? Filosoficamente falando, nós seres humanos temos princípios e valores que regem o convívio social.[2] Além disso, usamos nossas habilidades motoras-finas e sensoriais não apenas para a reprodução e sobrevivência, mas também para apreciar e criar o belo, pictoricamente representado pela literatura, música, pintura e seus derivados. São camadas abstratas de percepção que norteiam e tocam sensivelmente apenas a nós, seres humanos.
Este não é um artigo de opinião. Longe de ser um guia prático. Sob o ponto de vista de um homem e usando alguns conceitos filosóficos [3], desenvolvo uma narrativa para discutir a amamentação. Não quero aqui julgar, generalizar, ou sugerir um entendimento sobre a vivência de uma mulher durante o puerpério. Quero simplesmente contribuir com a campanha Agosto Dourado 2022, que tem como lema “Fortalecer a amamentação: educando e apoiando“, como pai, como um homem que deve ser sensível e participar desse momento.
Para começar a debater a amamentação, partimos do fato de que este processo é um elo entre nós seres humanos com outras tantas espécies de mamíferos. Sabe-se que são alterados aspectos físicos, fisiológicos, em especial as taxas hormonais, para favorecer a amamentação através de um profundo vínculo mãe-filho. Agora, se nós seres humanos somos a espécie de mamíferos que melhor se adaptou às condições mais extremas para sobreviver e prosperar, por que neste curto período da vida do recém-nascido humano, para UMA PARTE DaS mãeS lactanteS, a adaptação à rotina de amamentar pode ser tão tortuosa?
Se há sofrimento durante a amamentação, existe um cerceamento de algum aspecto de identidade. Coloco à mesa uma tese, talvez não inédita: de que, ao decidir deixar seus seios, corpo e existência disponíveis para alimentar uma boca faminta e para a qual não existe a consciência de ciclo circadiano, a mãe lactante desperta para uma fase da vida na qual tudo o que ela é drenada através de seus seios. Tudo vira leite. Lembremos que os outros mamíferos não têm essa opção de decisão, não têm consciência do que é ser algo além do que um ser reprodutor.
Na maior parte do tempo, as horas viram dias e os pensamentos da lactante passam a focar em estratégias basais de sobrevivência, como dormir e se alimentar. Aquela que antes criava, vira criatura. Dessa maneira, durante a amamentação a tese é que ocorre uma luta entre o lado animal contra o humano, que quer sobreviver. Desigual e desbalanceada, porém, é essa luta; não pela natureza animal do ato de amamentar e sobreviver, mas porque ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, que a partir da falácia de que a amamentação é um papel exclusivo da mãe, apresenta à mulher dois papéis excludentes: fonte de alimento ou mulher produtiva. Somado a isso, existe o entendimento de que no puerpério, o foco de atenção deve estar no filho (pueri).
Apropriando-se da armadilha da culpa, preocupação e estafa; a indústria alimentícia criou uma bem sucedida campanha de marketing, que vende a ideia de complementação nutricional para lactantes, cujos filhos estão com uma taxa de crescimento inadequada. É incrível pensar que a humanidade tenha chegado ao ponto de não conseguir nutrir sua prole exclusivamente com o leite materno. No Brasil, muitas mães saem das maternidades e de consultórios pediátricos com uma RECEITA MÉDICA e uma amostra grátis de um produto lácteo que promete nutrir adequadamente o bebê. Um padrão de “conduta” não questionado, porém questionável, pois certamente a mãe alarmada, ouviu que sua produção de leite é baixa ou que seu leite é fraco. Estes e outros absurdos são falados na cara dura, sem sequer fazer uma análise do leite, sem sequer perguntar se a lactante sabe amamentar e/ou se ela passou por uma consultoria especializada em amamentação. Será que essa mulher sabe como oferecer seu seio para a criança, sabe como massagear seus seios, sabe que pode ordenhar para aliviar a dor ou estimular a produção de leite, será que ela conhece diferentes posições para amamentar seu filho com mais conforto? Será que esta mulher está com dor, com empedramento nos canais e glândulas mamárias, mastite, se ela tem bico invertido ou está com rachadura neles? Será que o bebê tem um freio na língua que impede a pega eficiente ou se ele está mamando com uma frequência inadequada? Para todas as questões relacionadas à amamentação existe uma solução que não a “fórmula mágica”, no caso, o alimento lácteo de lata de cor (e preço) de barras de ouro.
Ainda não colocamos na conta a baixa participação dos pais/companheiros nas tarefas domésticas, dificultando ainda mais o extenuante processo de amamentação. Com tanta pressão vinda de todos os lados, ceder ao alimento alternativo, nutritivo e prático, é uma oferta tentadora. Julgamos a mulher exausta que deixou de amamentar e não responsabilizamos o sistema que a exauriu. Fala-se da importância da amamentação, mas não valorizamos nem apoiamos adequadamente quem amamenta.
Não deveria ser, mas hoje, amamentar é um ato de resistência. Se existe resistência, é porque importa. Importa não só para os nossos filhos, mas para a sociedade como um todo.
Já passou da hora adotarmos o termo Materpério, substituindo o puerpério; deixando explícita a importância da mãe lactante, ressignificando e colocando em destaque seu papel na sociedade. Indo além do termo, é necessário colocar em prática uma série de mudanças estruturais: uma das mais importantes é desconstruir o mito de que amamentação é assunto exclusivo das mães. Nutrir uma criança é corresponsabilidade do pai/companheiro/companheira, assim como cada célula é corresponsável pela vida do todo. Quando uma célula parte para uma carreira solo, ela pode comprometer a saúde daquele ser vivo. Na sequência e não em ordem de importância, a amamentação é também corresponsabilidade da rede de apoio, dos empregadores, enfim, da sociedade. Para que um fruto cresça, precisamos nutrir a árvore e não o fruto em si. Então, se queremos filhos saudáveis, cuidemos para que as mães estejam saudáveis. Podemos ir além, sob a tutela de Helena P. Blavatsky, que nos disse: “o potencial da humanidade é infinito e todo o ser tem uma contribuição a fazer por um mundo mais grandioso. Estamos todos nele juntos. Somos UM “. Portanto, nossos filhos, nós, futuras gerações, sociedade e humanidade: somos UM.
Na prática, como um homem/companheiro ou companheira não lactantes podem exercer o papel de corresponsável pela amamentação? Nunca te explicaram isso? Vão aqui algumas dicas (aqui já não estamos mais no campo filosófico).[5]
Você não tem o seio que produz leite, mas pode facilmente assumir a manutenção da casa, fazer as compras e preparar as refeições. Nos intervalos entre as mamadas, com o suporte do leite ordenhado (recolhido) e acondicionado para a alimentação complementar, você deve oferecer condições para que a lactante possa fazer aquilo que faz bem para ela naquele momento. Por exemplo: sair para tomar um café (sem a criança), confraternizar com amigas/amigos (sem a criança), sair para cuidar de si, fazer caminhadas ou compras. Você deve constantemente perguntar, incentivar e criar condições concretas para que a mulher possa ser e não apenas existir.
Neste dia em que se homenageiam os pais, que tal divulgar mais informações desse tipo?
A capa deste artigo é uma montagem, de artes feitas pela @didashneider (Instagram). As artes foram usadas, com a autorização da Dida, que é parteira, enfermeira obstétrica, educadora e disseminadora dos conceitos e de temas relacionados ao parto humanizado e gestação. Em sua arte, ela aplica magistralmente a teoria, fundamentos técnicos e seu conhecimento para disseminar e facilitar o entendimento da humanização do parto. Sigam-na!
Notas:
[1] Além da movimentação das placas tectônicas, dos mantos e da lava, deve-se considerar a compatibilidade química dos elementos, reatividade com o oxigênio, com a água, condições de temperatura e pressão; para que possamos discutir profundamente a diferenciação e criação dos diferentes minerais. Este parágrafo é um recorte simplificado da natureza e das transformações geológicas.
[2] Muitos filósofos se debruçaram no tema “o que é ser humano”. Portanto, é impossível resumi-lo em poucas palavras. Para ser breve, vou usar o conceito do altruísmo, o qual estabelece que o homem veio ao mundo para ser fator de soma, estamos aqui no mundo para sairmos maiores do que entramos. Para isso, não pode agir como um animal guiado pelo acaso e instintos; deve usar sua consciência e assumir a responsabilidade pelos seus atos, visando um bem maior e não individual. Como disse Marco Aurélio em suas Meditações, nada acontece ao cachorro que não é próprio do cachorro. Nada acontece ao cavalo que não é próprio do cavalo. Nada acontece ao homem que não é próprio do homem.
Pode parecer estranho falar de uma “consciência” do mundo inorgânico e colocar os minerais em uma escala evolutiva de sentidos. No entanto, existe a Hipótese de Gaia, a qual propõe que a Terra seria um organismo vivo e que consegue se auto-organizar. Foi cunhada por James Lovelock na década de 70. Como era especialista em exploração espacial na Nasa, Lovelock se questionou: por que a Terra tem uma atmosfera tão estável? Como consegue regular adequadamente os gases e a temperatura, diferentemente dos outros planetas à nossa volta? Partindo dessas questões, analisou detalhadamente a interação dos seres vivos com a superfície terrestre, e observou que os organismos vivos e seu entorno mineral estão perfeitamente integrados.
Quer saber um pouco mais: O que é a hipótese de Gaia, que defende que a Terra ‘está viva’
[3] Faço uso de máximas de Platão, Hermes Trimegisto, Epiteto, Marco Aurélio e Helena P. Blavatsky, dentre outros; para guiar a discussão. Os filósofos citados viveram de acordo com aquilo que deixaram em seus escritos, por isso seus ensinamentos não são apenas compêndios de frases de efeito, são ecos de vidas que reverberam até os dias atuais. Se as observações de Darwin ainda servem de referência para o entendimento da evolução das espécies, os conceitos filosóficos são um norte para progredirmos como seres humanos.
[4] Por sinal, felizes são os dias dos pais. Todos os dias são dias dos pais; dos pais que choram, cuidam, acolhem, educam e participam. Homens que saem de suas caixinhas, se desmontam e se reconstroem. Parabéns aos pais que se dão de presente, para aqueles que são Pais-Presentes.
[5] Existe uma infinidade de livros que tratam da amamentação, cito aqui apenas um, bem relevante e prático: Leite Fraco? Um guia prático para uma amamentação sem mitos. Gabrielle Gimenez, Editora Matrecência. Existem canais no youtube e contas no Instagram tratando da amamentação e assuntos relacionados, de forma séria e com propriedade; novamente, apenas alguns: @amamentemais Enfa. Olga Carpi, @tiagopediatra Tiago Vannucchi, @averonicalinder, @didashneider e @graziverdade Fga. Graziela Verdade.
1 thought on “Materpério: uma nova perspectiva sobre o período da amamentação (V.5, N.8, P.3, 2022)”