Comidas artificiais: uma nova tendência? (V.4, N.3, P.3, 2021)

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Tempo de leitura: 7 minutos
#acessibilidade Foto de uma bancada de laboratório com placas de Petri e pequenos tubos de ensaio. À frente, uma mão vestindo uma luva azul segura uma placa de Petri com um pedaço de carne vermelha dentro.

A relação entre homem e gado vem sendo desenvolvida desde tempos antigos. Uma dieta baseada no consumo de proteínas foi um dos pontos fundamentais para que o homem se diferenciasse dos outros animais e tomasse o topo da pirâmide da dominância sobre o Mundo.

Apesar de problemas relacionados à produção de carne para consumo sempre serem discutidos, nunca, propriamente, chegou-se a uma conclusão. Independentemente do aumento na produção de gases tóxicos, do uso de terras protegidas para se tornarem pastos, dos maus tratos para com os animais e da eventual causa de doenças, em grande parte carcinogênicas, e o aumento de peso, a crença em alimentos alternativos e mais saudáveis ainda possui poucos adeptos, enquanto que o consumo de carne vermelha só aumenta.

De acordo com a revista científica The Lancet, o crescimento populacional, previsto para aumentar em um terço entre 2010 e 2050, poderá levar os ecossistemas a situações irreversíveis, como a contaminação geral de reservas de água doce, terras estéreis e a acidificação dos oceanos. E sabendo que, com o acréscimo populacional, o consumo de carne também irá aumentar, o problema maior está na possibilidade da produção de carne já ter atingido um limite máximo, podendo não suprir a demanda. Os impactos socioambientais causados por um “simples” pedaço de carne são muito maiores do que se imagina.

Visto dessa forma, com o objetivo de encontrar alternativas a alimentos como a carne bovina que fossem sustentáveis, sem sofrimento animal, sem contaminações, com pouco gasto de água e energia e que conseguissem alcançar o maior número de pessoas com o baixo preço, cientistas e start-ups estão sendo responsáveis por uma revolução tecnológica onde o desenvolvimento de variados tipos de carne bovina criados em laboratório poderão fazer parte da nossa dieta no futuro.

O que são comidas artificiais?

Comidas artificiais são comidas produzidas em laboratório, seja pela utilização de técnicas de manipulação de células troncos de bois, porcos ou aves ou a partir de cereais ricos em proteínas, que visam substituir a proteína de origem animal, sem, contudo, perder as propriedades nutricionais do alimento. Elas também podem ser produzidas através de impressoras 3D, utilizando os mais diversos tipos de ingredientes, sejam eles in natura ou em pó.

A primeira carne de laboratório foi idealizada pelo biólogo holandês Mark Post, Chefe do Departamento de Fisiologia da Universidade Maastricht, na Holanda, e produzida por um laboratório britânico no ano de 2013.

Com a tecnologia utilizada, que envolve cultivo de células tronco e combinações com temperos e caldos nutritivos, seria possível salvar 440 mil vacas e ainda produzir 175 milhões de hambúrgueres. É considerada uma carne saudável já que tem pouca gordura e colesterol, demorando apenas 21 dias para ficar pronta, além de usar 92% menos água e emitindo 86% menos gases causadores do efeito estufa. Porém, o custo para fabricação de apenas um hambúrguer foi de 350.000 dólares.

Por que devemos dar uma chance às comidas artificiais?

São muitos os pontos negativos que cercam a produção e o consumo da carne bovina atual. Podemos citar dois deles como exemplos: os maus tratos e confinamento de animais e a poluição.

Sobre o primeiro ponto, nas fazendas criadoras de gados de corte, a violência é rotina e já começa desde os primeiros dias de vida do bezerro. Vacas prenhas são marcadas usando um ferro quente. Choques elétricos são desferidos sem nenhum pudor pelos trabalhadores para que os animais entrem mais rápido nos carros que os levarão ao abatedouro.

A superlotação também é um problema. O Ministério da Agricultura recomenda que os animais ocupem somente metade do espaço do recinto, mas a realidade é que os currais estão sempre lotados e a vacinação é realizada com os animais em movimento, aumentando o risco de ferimentos.

Sobre o segundo ponto, a pecuária contribui significativamente com a produção de metano e óxido nitroso, gases que intensificam o efeito estufa, mecanismo natural de aquecimento da Terra, aumentando a temperatura média do planeta e, consequentemente, derretendo calotas polares e elevando os níveis do oceano. No Brasil, a situação complica, pois a pecuária avança sobre áreas da floresta Amazônica, destruindo habitats naturais de espécies endêmicas, reduzindo a biodiversidade e o regime de chuvas em todo o país.

Tanto aves quanto bovinos são alimentados por rações feitas a partir de monoculturas como soja, milho, trigo e sorgo, que não só contribuem para o desmatamento da floresta tropical brasileira como também empregam em grande escala o uso de agrotóxicos. No Brasil, legalmente, são liberados 14 agrotóxicos proibidos mundialmente, compostos químicos responsáveis pela formação de câncer, infertilidade em mulheres, problemas hormonais, degradação do solo, contaminação de lençóis freáticos e maior resistência de pragas agrícolas.

Apesar de no Brasil ser proibida a aplicação de hormônios nos animais de corte, os antibióticos são liberados contribuindo para o desenvolvimento de resistência bacteriana, tanto em seres humanos quanto nos animais.

Os dois lados das comidas artificiais

  • Contra

Ainda é um produto muito caro. As primeiras pesquisas consumiram mais de 300 mil dólares para produzir um hambúrguer. Apesar de atualmente as empresas Memphis Meats e Just Meats, que são pioneiras na fabricação das comidas artificiais, já reduzirem seus custos de produção consideravelmente, a carne ainda não é comercialmente acessível, seja pelo preço ou pela produção incipiente.

Além disso, durante o processo de desenvolvimento das células-tronco, é necessário utilizar um sérum à base de sangue animal, o que é considerado contraditório ao que se promete para uma carne sustentável e sem a necessidade do abate animal.

Com o desenvolvimento da carne, a textura, o sabor e a consistência não são os mesmos de uma carne natural. Esse ponto, principalmente, é o que mais atrai os clientes. A aparência da carne é uma característica crucial quanto à venda e consumo.

E, por fim, a carne de laboratório, com seu principal objetivo de suprir toda a população com uma dieta alimentar necessária e sustentável, que visa atender todo e qualquer cidadão do planeta, demoraria um pouco mais de 20 anos para chegar aos mercados e tornar-se acessível ao consumo popular.

  • Prós

Esses tipos de alimentos apresentam muitos pontos positivos: não emitem gases agravantes do efeito estufa, não poluem rios com resíduos ou agrotóxicos, não desmatam florestas para a plantação de monoculturas, não condena os animais a viverem confinados e a serem abatidos para atender o mercado, além de produzirem fontes seguras de proteína animal, sem contaminação por metais pesados (mercúrio), hormônios, antibióticos, bactérias ou vírus.

A mão de obra empregada no processo é altamente qualificada o que estimula não só os polos acadêmicos a formarem profissionais bem qualificados como também valoriza o trabalhador, reduzindo os casos de trabalho escravo.

Reflexão e necessidade

Sabendo sobre sua principal definição e as vantagens e desvantagens acerca da produção de carne em laboratório, o que deveria ser levado em conta é a questão da necessidade de realmente termos esse tipo de alimento nas dietas do futuro.

Por qual razão as comidas artificiais se tornariam tendência? O desenvolvimento das mesmas não seria, na realidade, apenas mais uma complicação entre várias e gasto de dinheiro que poderia ser investido em outra área? Não poderiam ser elaborados métodos mais sustentáveis quanto à produção de carne bovina, sem que fossem sintetizados em laboratório? E se, ao invés de inovações tecnológicas, a fonte de proteínas fosse substituída por insetos, uma fonte quase tão rica em proteínas quanto as carnes vermelhas?

E além de apenas carnes vermelhas, mas outras menções de alimentos artificiais como uma espécie de salmão geneticamente modificado, com mais carne, ou o leite de vacas geneticamente modificado, que não causa reações alérgicas; como eles poderiam se tornar tendência? Quanto tempo levaria para que essas inovações se tornem acessíveis e ao gosto das pessoas?

Questões como essas são primordiais para nossa reflexão a respeito do tema. Como uma invenção revolucionária para nossa saúde e para o desenvolvimento e preservação dos ecossistemas pode afetar todo um contexto histórico, econômico, cultural, político e social?

Fontes:

Fonte da imagem destacada: Foto criada por anyaivanova – br.freepik.com

EXAME. Startup israelense cria primeiro bife em laboratório. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/ciencia/startup-israelense-cria-primeiro-bife-em-laboratorio/>. Acesso em: fev. 2021.

VEJA. Vem aí o primeiro hambúrguer feito em laboratório. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/ciencia/vem-ai-o-primeiro-hamburguer-feito-em-laboratorio/>. Acesso em: fev. 2021.

YOUTUBE. Inside the Quest to Make Lab Grown Meat | WIRED. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QO9SS1NS6MM>. Acesso em: fev. 2021.

ÉPOCA. A carne feita em laboratório. Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/noticia/2013/08/carne-feita-bem-laboratoriob.html>. Acesso em: fev. 2021.

HUFFPOST. “Clean Meat”: A carne do futuro existe e não fere nenhum animal. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2018/10/18/clean-meat-a-carne-do-futuro-existe-e-nao-fere-nenhum-animal_a_23565075/>. Acesso em: fev. 2021.

THE GREENEST POST. Brasil permite consumo de 14 agrotóxicos proibidos mundialmente. Disponível em: <https://thegreenestpost.com/brasil-permite-consumo-de-14-agrotoxicos-proibidos-mundialmente/>. Acesso em: fev. 2021.

Para saber mais:

SPECHT, Liz. Meat by the molecule: making meat with plants and cells. Disponível em: <http://www.biochemist.org/bio/04004/0018/040040018.pdf>. Acesso em: fev. 2021.

THE GUARDIAN. The new food: meet the startups racing to reinvent the meal. Disponível em: <https://www.theguardian.com/environment/2018/apr/30/lab-grown-meat-how-a-bunch-of-geeks-scared-the-meat-industry>. Acesso em: fev. 2021.

THE LANCET. We need to talk about meat. Disponível em: <https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(18)32971-4/fulltext>. Acesso em: fev. 2021.

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