#acessibilidade: A foto é da escultura chamada “Ahu Nau Nau”, na praia de Anakena, na ilha de Páscoa. Na escultura há uma plataforma com sete estátuas em formato humanoides, chamadas “moai”, em estado de preservação variado, algumas com coroas de pedra.
Texto escrito em colaboração com Olívia Silva Amann, estudante de ciências sociais na USP
“Nossa mt bom falar com alguém q entende minhas ‘brizas’”
Aconteceu que, indo para a universidade onde estudo, no ônibus, estava lendo um livro sobre cultura grega de Werner Jaeger e me deparei com a seguinte frase:
“nos é permitido falar de uma cultura chinesa, hindu, babilônica, hebraica ou egípcia, embora nenhum desses povos tenha uma palavra ou conceito que a designe de modo consciente”.
Pensei: “ué, se o povo não tem uma palavra para cultura, podemos falar da “cultura” deles?”. Logo, lembrei de uma amiga que estava estudando antropologia em uma outra universidade e mandei o texto para ela. Passamos quase um semestre conversando sobre o assunto: o que raios é cultura?
Como estudante de neurociência, penso que se várias pessoas tiverem acesso aos mesmos estímulos (festividades, histórias, filmes, músicas…) e serem incentivados a terem a mesma interpretação sobre eles (educação, moral, leis…), o cérebro dessas pessoas terá um funcionamento parecido em certas situações, fazendo com que decisões tomadas também sejam similares (o que eu poderia chamar de cultura).
É o que ocorre, por exemplo, com a linguagem. Aprendemos a falar nossa língua materna após vários estímulos de pessoas à nossa volta, que nos dizem que “eu falar” é errado e “eu falo” é certo. Não à toa, Losin e seus colaboradores, em um artigo de 2010 sobre neurociência cultural, apontam a linguagem como um de seus principais subcampos de estudo.
Mas minha “definição” de cultura parece não ser suficiente. O artigo de Losin também se propõe a responder “como algo tão complexo e abstrato como ‘cultura’ pode ser estudado com metodologias tão concretas e quantitativas?” (da neurociência). Antes de falar de aspectos biológicos, como variação genética regional, os autores expõem uma dificuldade central nos estudos: definir “cultura”.
Ao longo das conversas descobri que nem mesmo quem estuda o assunto tem uma opinião tão sólida. Uma das mensagens que recebi foi sobre um texto de Kluckhohn com 11 definições de “cultura”, das quais a que mais gostei foi “um precipitado da história” (amo esses termos da química sendo usados nas ciências sociais e humanidades). Minha amiga, por outro lado, preferiu uma definição, talvez mais prática para seu campo de estudo, dada por Roy Wagner: “A antropologia é o estudo do homem ‘como se’ houvesse cultura”.
A definição do objeto de estudo é uma das etapas iniciais e mais cruciais para qualquer investigação científica. Não entender o que se estuda, suas características e limitações podem levar a conclusões errôneas durante a pesquisa. A ideia aqui não é ser rigoroso, nem desrespeitar os estudiosos que trabalham com estes conceitos, mas sim mostrar um pouco do que é a vida acadêmica: aprender sobre diferentes pontos de vista a partir de diversos autores e professores e construir modelos. Seja nas ciências sociais, exatas, naturais, humanidades ou artes, precisamos ter o entendimento de que nosso conhecimento não são verdades absolutas, são somente modelos, limitados à percepção do mundo criada em nossos encéfalos.
Para os que esperam obter verdades inquestionáveis quando estudam, insisto que isto não é algo ruim. Da mesma maneira que um avião de papel pode ser um modelo muito bom de um avião real se seu objetivo for estudar as bases da aerodinâmica, construir conceitos como cultura e se dedicar a seu estudo pode gerar grandes conquistas para a humanidade: o entendimento de outras visões do mundo, das limitações de sua própria visão, de pensamentos discriminatórios como a eugenia, a busca pela preservação de culturas ameaçadas e a construção de diálogos interculturais (mesmo que por apps de mensagens).
Após quase um semestre, minha amiga usou nossas conversas para fazer o trabalho final da disciplina de antropologia dela (e ganhou uma excelente nota) e, após lê-lo, eu consegui escrever este texto. Assim, uso das palavras de minha amiga e espero que vocês, leitores, possam ter conversas que cheguem à mesma conclusão: “Nossa mt bom falar com alguém q entende minhas brizas”
Viva a universidade pública!
Fontes:
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo, Martins Fontes, pp. 7-8. 1995.
KLUCKHOHN, Clyde. Mirror for man: The relation of anthropology to modern life. Routledge, 2017.
LOSIN, Elizabeth A. Reynolds; DAPRETTO, Mirella; IACOBONI, Marco. Culture and neuroscience: additive or synergistic?. Social Cognitive and Affective Neuroscience, v. 5, n. 2-3, p. 148-158, 2010.