#acessibilidade Modelo esquemático da estrutura atômica bidimensional do grafeno. Conjunto de várias pequenas esferas de cor cinza claro conectadas entre si por fios também de cor cinza claro em um fundo cinza escuro. As esferas são conectadas a três outras esferas pelos fios formando uma rede hexagonal.
Em outubro de 2004, a prestigiosa revista científica Science publicou um artigo que iniciaria uma “corrida pelo ouro” dentro da área de pesquisa denominada física da matéria condensada. Porém, ao invés do elemento químico Au, o material estudado neste artigo continha apenas átomos de carbono. Estamos falando do material chamado grafeno.
O grafeno consiste de uma única camada de átomos formando uma rede hexagonal bidimensional, onde cada vértice da rede é composto de um átomo de carbono. Portanto, o grafeno nada mais é do que um único plano de átomos que compõe o material tridimensional grafite (esse que temos dentro dos nossos lápis). No grafeno, os átomos de carbono estão ligados via uma hibridização sp2, ou seja, cada átomo de carbono realiza uma ligação covalente com outros três carbonos.
Os dois autores principais do artigo de 2004, Andre Geim e Konstantin Novoselov, da Universidade de Manchester, Inglaterra, foram agraciados com o prêmio Nobel de Física de 2010 por “terem realizados experimentos inovadores com o material bidimensional grafeno”. Falaremos um pouquinho mais sobre este prêmio Nobel adiante.
Mas porque este material é tão fascinante? Para começar, o grafeno é o material mais fino que você possa imaginar, com espessura de apenas 1 átomo! Além disso, proporcionalmente à sua espessura, o grafeno é aproximadamente 100 vezes mais forte do que o mais forte aço existente. Não bastasse ser extremamente resistente, o grafeno apresenta também excepcionais propriedades de condução térmica e elétrica. Mas o que gerou todo um interesse de boa parte da comunidade científica de materiais em relação ao trabalho pioneiro de 2004 foi o comportamento peculiar dos elétrons de condução do material, que descreveremos brevemente a seguir.
Os dispositivos obtidos com o grafeno a partir de 2004 são relativamente simples de serem produzidos. O que Geim e Novoselov fizeram, simplificadamente, foi extrair de um substrato de HOPG (um tipo especial de grafite) filmes ultrafinos utilizando uma fita adesiva e então transferi-los para um substrato de óxido de silício (SiO2). Combinando diferentes tipos de microscópios, os pesquisadores puderam observar as regiões da superfície do SiO2 que possuíam filmes com espessura de poucas camadas atômicas de carbono, incluindo camadas com apenas 1 átomo de espessura. Ao inserir contatos elétricos nestes filmes ultrafinos, foi possível medir suas propriedades elétricas. Foi observado que a resistividade elétrica destes dispositivos podia ser alterada de um fator de aproximadamente 100 quando um campo elétrico externo era aplicado (electric field effect), milhares de vezes maior do que as variações até então observadas em qualquer sistema metálico. Além disso, os elétrons nestes dispositivos viajam por distâncias da ordem de submicrometros sem sofrerem nenhum tipo de espalhamento! Em física de semicondutores, a qualidade eletrônica é comumente descrita em termos da mobilidade dos portadores de carga μ.
Para o silício, o principal material utilizado na indústria de semicondutores, μ é da ordem de 1400 cm2V-1s-1. No artigo de 2004 foi reportado mobilidades da ordem de 10000 cm2V-1s-1 para os filmes com poucas camadas de grafeno.
Devido às fascinantes propriedades descritas acima, o grafeno se tornou do dia para a noite o material que seria responsável por uma revolução na indústria de semicondutores.
Porém, ao contrário do silício, o grafeno é um semicondutor com band gap nulo, o que significa que a banda de valência e banda de condução deste material se tocam e isso ocorre nos chamados pontos de Dirac. Em termos gerais, a dinâmica dos elétrons (e equivalentemente, dos buracos) que participam da condução neste material se comportam de uma maneira distinta, como se fossem partículas relativísticas sem massa, descritas pela chamada equação de Dirac. Portanto, o trabalho pioneiro de Geim e Novoselov não teve somente uma enorme repercussão devido ao potencial tecnológico que o grafeno aparentava ter, mas este trabalho abriu as portas para que fenômenos não usuais associados à eletrodinâmica quântica (a combinação da mecânica quântica e da teoria da relatividade) pudessem ser explorados em um material tão simples como o grafeno.
Voltando ao prêmio Nobel de Física. Como já citado, os pesquisadores da Universidade de Manchester foram agraciados com o prêmio em 2010, após 6 anos do famoso artigo da Science. Entre os pesquisadores da área de física da matéria condensada e ciência dos materiais, não havia dúvida que o prêmio seria entregue em algum momento aos pesquisadores, mas o curto prazo entre a descoberta e o prêmio pegou de surpresa, inclusive, os próprios vencedores. Alguns pesquisadores da área criticaram este curto intervalo de tempo, sugerindo que o grafeno ainda se tratava de uma promessa no campo tecnológico.
Em entrevista à revista Nature em outubro de 2010, logo após o anúncio do prêmio, Geim justificou que o “prêmio foi dado pelas descobertas das propriedades do grafeno e não pelas expectativas do material que ainda não se realizaram”. Outro ponto que gerou certa discussão na época, era se o prêmio de 2010 não deveria ter sido dividido com os cientistas responsáveis pela descoberta dos nanotubos de carbono, em especial, referente aos resultados publicados em 1991 pelo físico japonês Sumio Iijima. Na mesma entrevista à Nature, Geim justifica que o prêmio não foi resultado do altíssimo interesse da comunidade científica pelo grafeno e nanotubos de carbono, mas sim pelas propriedades físicas do grafeno descobertas por ele e Novoselov, propriedades estas que não são compartilhadas pelos nanotubos de carbono.
Outro fato histórico da época foi uma carta enviada por um dos principais cientistas da área de grafeno, Walter de Heer, do Instituto de Tecnologia da Georgia, nos Estados Unidos, para o comitê da área de física do prêmio Nobel. Em sua carta, de Heer aponta uma série de erros, de acordo com ele, que foram cometidos no documento emitido pelo comitê do prêmio Nobel para justificar a escolha dos vencedores. Em especial, de Heer cita a importância demasiada dada ao artigo da Science de 2004 e cita que os resultados deste artigo incluem dispositivos que continham mais de uma camada de grafeno. De fato, Geim e Novoselov publicaram um outro artigo em 2005, este na revista Nature, com resultados medidos exclusivamente em um dispositivo que continha apenas a monocamada de grafeno. Curiosamente, nesta mesma edição da Nature, outro grupo de pesquisadores, liderados por Philip Kim da Universidade Columbia em Nova York, publicaram também um artigo, lado a lado com o artigo do grupo de Manchester, com resultados experimentais para o grafeno. É comum a opinião entre pesquisadores da área de grafeno que Kim merecia ter dividido o prêmio Nobel de Física de 2010. Em um texto publicado na Nature sobre este debate, é afirmado que Geim disse que “Kim fez uma contribuição importante e teria sido um prazer ter dividido o prêmio com ele”.
Controvérsias e opiniões à parte, é um fato que o artigo de 2004 foi um divisor de águas na área de ciências dos materiais, em particular devido ao surgimento de uma nova área dedicada ao estudo de materiais bidimensionais. Ao se realizar uma procura com o termo “graphene” na base de dados Scopus, é retornado mais de 140 mil artigos relacionados, apenas de 2004 pra cá. Entretanto, a suposta revolução na indústria eletrônica com o grafeno ainda não veio e com isso outros materiais bidimensionais, tais como nitreto de boro hexagonal e dicalcogenetos de metais de transição, passaram a receber atenção pela comunidade de materiais bidimensionais. E quando se achava que “deste mato não sairia mais cachorro”, o grafeno resolveu dar novamente sua cara. Em um artigo publicado na Nature em abril de 2018, pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachussets observaram um comportamento supercondutor para o sistema formado por duas camadas de grafeno, empilhadas verticalmente, mas com as camadas rodadas precisamente de 1.1º uma em relação a outra. Mas essa história merece ser contada em um outro texto…
Fontes:
Fonte da imagem destacada: AlexanderAlUS [CC BY-SA 3.0], via Wikimedia Commons
K. S. Novoselov, A. K. Geim, S. V. Morozov, D. Jiang, Y. Zhang, S. V. Dubonos, I. V. Grigorieva, A. A. Firsov; Electric Field Effect in Atomically Thin Carbon Films; Science 306, 666 (2004). https://science.sciencemag.org/content/306/5696/666
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https://www.nature.com/news/2010/101118/full/news.2010.620.html
https://www.nobelprize.org/uploads/2018/06/advanced-physicsprize2010.pdf
K. S. Novoselov, A. K. Geim, S. V. Morozov, D. Jiang, M. I. Kastnelson, I. V. Grigorieva, S. V. Dubonos, A. A. Firsov; Two-dimensional gas of massless Dirac fermions in graphene; Nature 438, 197 (2005). https://www.nature.com/articles/nature04233.pdf
Yuanbo Zhang, Yan-Wen Tan, Horst L. Stormer, Philip Kim; Experimental observation of the quantum Hall effect and Berry’s phase in graphene; Nature 438, 201 (2005). https://www.nature.com/articles/nature04235.pdf
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Yuan Cao, Valla Fatemi, Shiang Fang, Kenji Watanabe, Takashi Taniguchi, Efthimios Kaxiras, Pablo Jarillo-Herrero; Unconventional superconductivity in magic-angle graphene superlattices; Nature 556, 42 (2018). https://www.nature.com/articles/nature26160