#acessibilidade: ilustração da vista lateral superior de um avião modelo A380 Airbus em voo, de cores branco, azul claro e azul escuro, e ao fundo um céu azul claro
Texto escrito por Samuel Peres Chagas & Dr. Wagner Rodrigo de Souza
Por mais que o etanol seja o biocombustível brasileiro mais lembrado entre a população devido ao grande investimento governamental com o programa Proálcool, e o seu grande sucesso a partir da década de 1970, outro combustível renovável tem origem brasileira, e mesmo que sua origem seja menos difundida que o seu coirmão, ele é muito utilizado até hoje e foi patenteado no Brasil por um pesquisador cearense muito importante para a nossa história científica.
O Engenheiro Químico José Expedito Parente foi um grande pesquisador brasileiro, e o responsável pelo depósito da patente da produção de biodiesel no Brasil, pela reação de transesterificação, método ainda utilizado nos dias de hoje. Utilizando o óleo de algodão, o então professor da Universidade Federal do Ceará concebeu a reação utilizando metanol, obtendo como produto final um biocombustível muito similar ao diesel e glicerol como subproduto (BiodieselBR, 2011).
No Brasil, o uso do diesel é feito majoritariamente pela frota de caminhões, que fazem um trabalho extremamente importante de escoamento de insumos, produtos e outros, porém, também é esta mesma frota a responsável por grande parte das emissões de gases de efeito estufa no território brasileiro. Assim, existe uma legislação específica para que o biodiesel seja utilizado em mistura com o diesel. Esta legislação tem como principal finalidade cumprir com os compromissos de neutralidade de carbono assumidos nas conferências ambientais sobre aquecimento global, como o Acordo de Paris de 2015, para diminuir as emissões provenientes da queima de combustíveis. Em 2022, a porção de biodiesel obrigatória em mistura ao diesel é de 10%, com perspectivas de aumento para 14% ao longo do ano e de 15% para 2023 (ANP, 2021).
Para a obtenção de biodiesel, se usa a reação de transesterificação, que é basicamente uma mistura entre um produto rico em ácidos graxos (também chamados de triglicerídeos) e um álcool. Você encontra esses ácidos graxos tanto em gordura animal, quanto em algas, microalgas ou um óleo vegetal. Já o álcool pode ser o metanol ou etanol. Para que a reação ocorra, é necessário também um catalisador.
Os triglicerídeos são formados por três (tri) cadeias de ácidos graxos e uma molécula de glicerol. Por meio da reação de transesterificação, mostrada na figura abaixo, ocorre a separação da molécula de glicerol, que dá origem à glicerina, e a molécula de biodiesel, sob a forma de ésteres, se origina a partir da reação do álcool utilizado com as cadeias de ácidos graxos. Por mais que a glicerina seja denominada como um subproduto da produção de biodiesel, ele é um produto de bastante valor agregado e muito valorizado na indústria farmacêutica e também de cosméticos.
#acessibilidade: ilustração com fundo branco representando uma fórmula estrutural de uma reação de transesterificação
Uma característica indispensável para a utilização do biodiesel é a sua composição, e isto pode ser variável de acordo com a matéria prima utilizada. O diesel fóssil é composto por hidrocarbonetos de cadeias carbônicas variando entre 10 e 25 átomos de carbono, sendo assim, é necessário que o biodiesel utilizado também tenha esta característica, para que não haja perda de rendimento, energia ou octanagem (índice de presença do composto octano, responsável pela resistência à queima espontânea no motor. Quanto maior a octanagem, maior a resistência e maior a qualidade do combustível) (Peixoto et al., 2015).
No ano de 2021, assim como nos anos anteriores, o óleo de soja foi de longe a principal matéria-prima para a produção de biodiesel no Brasil, correspondendo a mais de 70% de toda a produção brasileira (ANP, 2021). Com uma cadeia de produção muito bem estruturada e áreas de cultivo incrivelmente extensas, o reinado da soja deverá seguir por longos anos. Mas há outras oleaginosas interessantes para a produção de biodiesel, das quais, podemos citar a palma, o amendoim, o nabo-forrageiro, o girassol, a canola, o milho e o palmiste. Todas estas matérias-primas têm em comum uma característica crucial, já citada anteriormente: seus óleos possuem ácidos graxos de cadeias carbônicas similares aos hidrocarbonetos presentes no diesel fóssil.
O biodiesel também pode ser produzido através de gordura animal, e esta matéria-prima traz vantagens do ponto de vista do uso de um resíduo e redução do impacto ambiental, porém traz desvantagens como a formação de sabão na reação de transesterificação, a solidificação do produto em temperatura ambiente, e o maior percentual de enxofre se comparado aos óleos vegetais (EMBRAPA, 2021).
Há ainda alguns estudos envolvendo o uso de óleos de resíduos domésticos, denominados de WCO, do inglês Waste Cooking Oil. Esta matéria-prima é composta basicamente de restos de fritura de alimentos compostos por gorduras vegetais ou animais, junto do óleo de cozinha. Além de serem um produto de baixo custo (de 2 a 3 vezes mais barato que óleos vegetais) se comparado a outras matérias-primas, os WCOs estão amplamente disponíveis, e o seu uso para produção de biodiesel proporciona uma destinação ambientalmente amigável para estes resíduos que muitas vezes são abandonados sem nenhum tipo de tratamento. Por outro lado, as dificuldades relacionadas aos WCOs são relativas à necessidade de pré-tratamentos para remoção de impurezas. (Suzihaque et al., 2022).
Já a produção de biodiesel por meio de algas ou microalgas é bastante atrativa do ponto de vista de não utilizar o solo para produção, por terem um alto teor de óleo, e por possuir uma ótima taxa de crescimento. Mas, ao contrário da gordura animal e dos óleos vegetais, o custo para produção de biodiesel através do uso de algas e microalgas é bastante alto, o que por vezes inviabiliza este método de produção. (BiodieselBR, 2006).
Uma discussão importante do ponto de vista do uso das oleaginosas como matéria prima para biocombustíveis é o uso de alimentos na cadeia de biocombustíveis. Por mais que a produção de biodiesel de soja não comprometa o fornecimento de alimentos como farelo e o óleo de soja, a utilização da soja para a rota de biocombustíveis já atinge quase 60% da produção total dos grãos brasileiros (referência biodiesel BR). Sendo assim, é um caminho comum a busca por soluções em termos de matéria-prima que não conflitem com interesses sociais gerando uma competição alimentar. Neste aspecto, destacam-se algumas oleaginosas brasileiras presentes no Cerrado, como por exemplo a Macaúba, a Gueiroba, o Baru, o Buriti, a Mamona, e o Jerivá. Porém, ao contrário da soja e seus irmãos que fornecem óleos de cadeias carbônicas longas, ideais para o diesel, as palmáceas oleaginosas do Cerrado têm uma característica distinta: cadeias carbônicas curtas. E de que forma isso pode ser aproveitado?
Se voltarmos a pensar nas características dos combustíveis fósseis, notamos alguns combustíveis considerados mais “leves”, ou seja, compostos por cadeias carbônicas menores, como por exemplo a gasolina e o querosene. Atualmente, o querosene é usado amplamente na aviação, como o principal combustível de aeronaves para transporte de cargas e passageiros ao redor do mundo. O querosene de aviação é denominado QAV ou Jet-A1, e o querosene obtido através de fontes alternativas, como biomassa ou óleos vegetais é denominado de QAV alternativo.
Mas onde o biodiesel se encontra com o querosene de aviação? Por meio das oleaginosas do Cerrado! Como dito anteriormente, a principal característica dos óleos provenientes das oleaginosas do Cerrado, como as palmeiras macaúba e a gueiroba, é a grande abundância de ácidos graxos de cadeias carbônicas curtas, entre 8 e 14 carbonos, o que corresponde exatamente a faixa de hidrocarbonetos presente no querosene fóssil.
Poderia então o biodiesel substituir em parte o querosene da mesma forma que substitui uma parte do diesel? A resposta é sim! Chamado de biodiesel leve, bioquerosene, ou querosene alternativo, o biocombustível escolhido para substituir o querosene de aviação pode ser obtido da mesma forma que o biodiesel convencional: pela reação de transesterificação de óleos vegetais. É claro que, por se tratar de um combustível para aeronaves, existem implicações muito sérias para a sua utilização, e são necessárias várias avaliações bastante específicas das suas características, como a temperatura de congelamento, a viscosidade, a densidade, o conteúdo de água, o ponto de fulgor, entre outras inúmeras propriedades que são avaliadas no Brasil pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Além disso, um grande gargalo enfrentado por este método de produção é a presença de oxigênio nas moléculas dos ésteres, o que afeta diretamente as características de inflamabilidade e congelamento do combustível, limitando a mistura entre biodiesel e querosene a valores mínimos. Portanto, se faz necessário um processo de desoxigenação dos ésteres (remoção da molécula de oxigênio), para que se tornem hidrocarbonetos, e assim possam ser utilizados em grandes porcentagens de mistura.
Por outro lado, os primeiros passos já foram dados e as pesquisas evoluem cada vez mais, mostrando que já é possível realizar misturas de até 10% sem comprometer as características principais de um biocombustível para aviação. (Silva et al., 2019). Assim como em outros países, o Brasil possui pesquisadores e projetos voltados para o uso principalmente do óleo de macaúba, e já realizou voos com aeronaves abastecidas com uma porcentagem de biocombustível produzido a partir de óleos vegetais e há um grande potencial de produção, uma vez que ocorram investimentos neste sentido.
Portanto, são inegáveis as grandes contribuições que o biodiesel pode oferecer para a nossa sociedade. A grande gama de produtos que podem ser convertidos em biodiesel demonstra uma face verdadeiramente bela deste biocombustível que atinge voos cada vez mais altos. A redução das emissões atmosféricas causadas pelos combustíveis fósseis é uma preocupação constante e crescente, e o biodiesel não se limita a contribuir somente neste aspecto; ele também garante o uso de diversos materiais que não teria nenhum tipo de finalidade, sendo tratados como resíduos. Além disso, as oleaginosas brasileiras podem oferecer óleos vegetais muito ricos para a produção de biocombustíveis, além de consolidar um uso benéfico para estas matérias-primas.
Avaliando todos os aspectos citados, é evidente que o Brasil possui a tecnologia necessária, a matéria-prima abundante e o mercado crescente para que o biodiesel se torne cada vez mais um biocombustível comum entre carros, caminhões e também entre aviões.
Fontes:
BiodieselBR. Expedito Parente, um pesquisador brasileiro. 13 set. 2011. Disponível em: https://www.biodieselbr.com/noticias/bio/expedito-parente-pesquisador-brasileiro-130911.
BiodieselBR. Biodiesel de Algas. 12 out. 2006. Disponível em: https://www.biodieselbr.com/destaques/2006/biodiesel-algas.
ANP. Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis 2021. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/anuario-estatistico/anuario-estatistico-2021.
PEIXOTO, C. G.; et al. Caracterização físico-química de óleo diesel rodoviário e marítimo por técnicas convencionais e destilação simulada por cromatografia gasosa. I Congresso Nacional de Engenharia de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. 2015. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/editora/anais/conepetro/2015/Modalidade_1datahora_30_03_2015_19_21_31_idinscrito_1910_535fb1c2beff8bc3dc5a997103a93d30.pdf.
EMBRAPA. Gordura Animal. 08 dez. 2021. Disponível em: https://www.embrapa.br/agencia-de-informacao-tecnologica/tematicas/agroenergia/biodiesel/materias-primas/gordura-animal.
SUZIHAQUE, M.U.H.; et al. Biodiesel production from waste cooking oil: A brief review, Materials Today: Proceedings, Volume 63, Supplement 1, 2022, Pages S490-S495, ISSN 2214-7853, DOI: https://doi.org/10.1016/j.matpr.2022.04.527. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2214785322026918.
Da SILVA, J.Q.; et al. Light biodiesel from macaúba and palm kernel: Properties of their blends with fossil kerosene in the perspective of an alternative aviation fuel, Renewable Energy, Volume 151, 2020, Pages 426-433, ISSN 0960-1481, DOI: https://doi.org/10.1016/j.renene.2019.11.035. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0960148119317161.
Fonte da imagem 1: Disponível em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/82/Airbus_A380_blue_sky.jpg.
Fonte da imagem 2: Faustino ufrj, CC BY-SA 4.0. Disponível em :https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons.