A incrível jornada de uma Cientista prêmio Nobel (V.6, N.10, P.2, 2023)

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Tempo de leitura: 6 minutos
#acessibilidade: Imagem de Katalin Kariko sorrindo e olhando diretamente para a câmera, a cientista está usando um jaleco branco e de fundo está o laboratório em que ela está trabalhando.

Texto escrito por Artúr Franz Képpler

Sabe quando um parente muito querido manda uma mensagem, dizendo que foi recontratado depois de um bom tempo desempregado? Ou quando um vizinho te diz que o filho dele passou naquela universidade que o jovem sempre sonhou. Então, é essa sensação de calorzinho no coração que vou usar para costurar o artigo que começa agora… 

Em meados de 2020, conheci a história de Katalin Karikò. E no início de outubro de 2023, o ciclo se fecha. Durante este breve período, foram muitos encontros em inúmeras esferas do ensino e da pesquisa, nenhum deles devo adiantar, presencialmente. Saliento também que esses encontros foram unilaterais, pois Katalin apareceu em minhas aulas e listas de leituras, sem que ela jamais tivesse ideia da minha existência. Eu até escrevi um texto que tem Katalin como uma das personagens (Oppenheimer e as cientistas apagadas da história)

Coisa de fã, sabe? 

Quem não a conhece, deveria conhecê-la. E é por isso que escrevo este texto. Quero que muitos a conheçam e muitas meninas se inspirem na sua trajetória. Katalin me nutriu de esperança, me fortaleceu em um dos momentos mais difíceis da minha carreira, na qual tive que me reinventar como professor e como pesquisador. No auge do período de confinamento pandêmico, Katalin foi uma das mulheres que não me deixaram perecer. Eu a elegi como uma das minhas heroínas.1

Para aqueles que não acompanham o Oscar da ciência, no dia 02 de outubro de 2023, Katalin foi agraciada com o Nobel de Medicina. 

Para entender por que ela ganhou esse prêmio, precisamos falar um pouco sobre biologia molecular. Mais especificamente, do RNA mensageiro (RNAm). O RNA é uma  biomolécula formada por uma cadeia de ácidos nucleicos, que assim como o famoso DNA, faz parte da maquinaria de replicação celular e produção das proteínas que um ser vivo necessita. Existem diversos tipos de RNAs, classificados pelo tamanho da cadeia de nucleotídeos e função. Você deve ter aprendido na escola sobre os primeiros RNAs conhecidos, os RNAm, ribossômico (RNAr) e transportador (RNAt). O RNAm é formado a partir da sequência de DNA e carrega a informação de como produzir determinada proteína. Nos ribossomos, estruturas que ficam no citoplasma das células, formadas por RNAr e proteína, o RNAm é decodificado em uma sequência de aminoácidos trazidos por um RNAt, moléculas que, em cadeia, formam uma proteína. . 

Dito isso, vocês já devem ter sacado que a carreira científica da nossa querida Katalin foi construída no estudo do RNAm. Pois bem, acertaram!

A história de Katalin é de fato linda, se eliminarmos todos os percalços e dificuldades pelas quais passou. Ela poderia ter desistido da carreira científica, como muitas mulheres da sua geração faziam, ou ter buscado um campo de estudo considerado mais promissor.2 Mas não, foi fiel ao seu propósito de empregar o RNAm para a cura ou tratamento de doenças. Segundo ela mesma, recebeu inúmeras cartas de rejeição para manter em andamento sua linha de pesquisa. Em uma reportagem de dezembro de 2020, Katalin apresenta ao repórter uma dessas cartas, que negam seu pedido de financiamento, no valor de 10 mil dólares.3 Ninguém e nenhuma fonte financiadora acreditava na ideia de Katalin, o que prejudicou sua produção científica e a fez ser rebaixada de cargo na universidade.4 

Encurtando muito a história, em 1997, Katalin conhece Drew Weissman em uma fotocopiadora da Universidade da Pensilvânia e ao ouvir sua história, ele a convida para integrar a equipe de pesquisa de seu laboratório.5 Por sinal, Drew divide com ela o  prêmio Nobel desse ano. Com o devido reconhecimento e com liberdade, Katalin trabalhou muito e encontrou um caminho para o desenvolvimento de ativos farmacêuticos seguros, baseados em RNA mensageiro. Essa foi a tecnologia usada para a produção massiva das vacinas contra o vírus Sars-CoV-2 da BioNTec/Moderna! Foi o trabalho de muitos anos e a perseverança de Katalin que salvaram bilhões de vidas. Ela é uma heroína, agora reconhecida com um Nobel. Salvou vidas de muitos que não acreditavam e continuam não acreditando na importância da vacinação em massa e abriu novas fronteiras para se combater doenças que ainda continuam assolando a humanidade.

No entender da Real Academia Sueca de Ciências e outros pesquisadores da área de ciências biológicas, o trabalho original de Katalin e Drew foram essenciais para o sucesso das vacinas que têm o RNAm como ativo farmacêutico. Para quem não é do círculo próximo, fica difícil dizer de qual dos dois veio a sacada genial ou quem foi mais importante para consolidar a tecnologia. A ciência é uma construção coletiva. Quantas Katalins teríamos, ou quantas vidas mais teriam sido salvas, se não fosse tão difícil para as mulheres persistirem na ciência? Que tenhamos cada vez mais Katalins colaborando em posição de igualdade com os muitos Drews.

Para finalizar, transcrevo o trecho final de uma reportagem de 2020, do El País:

Karikó recusa os reconhecimentos com uma mistura de humildade e orgulho. “Nos últimos 40 anos, não tive nenhuma recompensa pelo meu trabalho, nem mesmo um tapinha nas costas. Não preciso disso. Sei o que faço. Sei que é importante. E estou muito velha para mudar. Isso não me subiu à cabeça. Não uso jóias e tenho o mesmo carro velho de sempre”, comenta. Quando era uma jovem cientista ainda em sua Hungria natal, sua mãe lhe dizia que algum dia ganharia o Nobel. “Eu lhe respondia: ‘Mas se não posso conseguir nem uma bolsa de estudos, não tenho nem mesmo um emprego fixo na universidade!.”  

Onde estiver, sua mãe deve estar orgulhosa de você.

Todos estamos. Orgulhosos e gratos.

Aguardamos sua visita aqui na UFABC 🙂

  1. Eleja sua heroína/herói. É um lema filosófico muito corrente. Platão recomendava que deve-se ter um herói de referência, um modelo para se inspirar. Uma vez que, se não há um modelo, o ser humano tende a trabalhar a si mesmo de maneira aleatória, seguindo modismos e maneirismos, o que na maioria das vezes, não são dignos e não são baseados em valores edificantes. Esta heroína/herói, pode ser fictício, de origem histórica ou uma pessoa exemplar que passou pela sua vida. Quem você tornaria sua heroína de cabeceira? Conte para nós!
  2. Na década de 90, o foco de investimentos eram as pesquisas focadas em terapias genéticas (extração e manipulação do DNA).
  3. Atualmente, no Brasil, para manter um laboratório de biologia molecular funcionando por um ano, um financiamento de cerca de 50 mil reais (~10 mil dólares) é insuficiente para comprar insumos básicos.
  4. É importante ressaltar, que um pesquisador sem reconhecimento “financeiro”, sem linha de pesquisa financiada, não perde só seu prestígio na comunidade acadêmica. Em muitas universidades dos EUA, por exemplo, os pesquisadores perdem o “emprego”. Uso o parênteses aqui pois o termo “emprego” é uma simplificação de uma atividade funcional remunerada;  um posto de trabalho. 
  5. Quem quiser mais detalhes, leiam os textos destas reportagens pré-Nobel A mãe da vacina contra a covid-19: “No segundo semestre, poderemos provavelmente voltar à vida normal” | Ciência | EL PAÍS Brasil (elpais.com) & ‘Redemption’: How a scientist’s unwavering belief in mRNA gave the world a Covid-19 vaccine | The Telegraph (telegraph.co.uk).

 

Agradeço imensamente a minha querida amiga Vanessa K. Verdade pelo sábio direcionamento do texto e pela contribuição valorosa ao reescrever o parágrafo que trata dos RNAs. Obrigado!

 

Fonte da imagem destacada. Researchers who developed the mRNA technology behind Covid vaccines win ‘America’s Nobel’. CNN. Disponível em https://edition.cnn.com/2021/09/24/health/lasker-awards-mrna-weissman-kariko/index.html.

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