A ciência e a arte das imagens astronômicas (V.5, N.7, P.4, 2022)

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Tempo de leitura: 4 minutos
#acessibiliade: A imagem mostra regiões de nascimento de estrelas (área NGC 3324 da nebulosa Carina) registrada pelo telescópio James Webb Space. 

Texto escrito por Renato Rodrigues Kinouchi  

As imagens do espaço sideral veiculadas pela equipe de pesquisadores do telescópio espacial James Webb (James Webb Space Telescope – JWST) são de tirar o fôlego. Nelas vemos, com grande nitidez, objetos celestes que se encontram a bilhões de anos-luz da Terra. De tão belas, essas imagens parecem obras de arte. Na verdade, elas são obras de arte — esse é o ponto que pretendo defender — feitas a partir do conhecimento científico e do aparato tecnológico disponível. Isso não significa dizer que haja algum tipo de enganação envolvida, mas elas são representações artísticas cientificamente informadas daqueles objetos celestes.

Se apontarmos uma luneta para Júpiter — tal como fez Galileu na ocasião em que descobriu as luas do planeta gigante — a luz do sol refletida pelo planeta será desviada pelas lentes da luneta e nós literalmente conseguiremos vê-lo de maneira ampliada. Isso acontece porque nós, seres humanos, somos capazes de enxergar uma parcela do espectro eletromagnético, a luz visível. Se conseguirmos acoplar uma câmera fotográfica à luneta, seremos capazes de fotografar o objeto celeste visado. Ocorre que o JWST não capta a luz visível e, ademais, não tira fotos da maneira como estamos acostumados a fazer: isto é, mediante um gesto fotográfico, nos termos do filósofo Vilém Flusser, autor do livro Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

A grande diferença do novo equipamento, em relação ao famoso telescópio espacial Hubble, é a sua capacidade de captar luz infravermelha, cuja frequência da onda é, por assim dizer, mais alongada do que a luz visível. Ocorre que o universo é imensamente grande e está se expandindo e, em razão disso, a luz visível emitida por objetos que se afastam de nós tende para o vermelho — em razão do chamado efeito Doppler; e pelo mesmo motivo, a luz de objetos que estão se aproximando de nós tende para azul. Como o JWST capta a luz infravermelha, ele consegue enxergar mais longe, pois as ondas luminosas dos objetos mais distantes podem ser mais bem distinguidas. Outra vantagem é que a luz infravermelha sofre menos distorções quando atravessa nuvens de poeira cósmica, e por isso o JWST consegue ver através dessas nuvens, obtendo imagens muito mais nítidas daquilo que se encontra atrás delas.

Entretanto, as imagens, digamos assim, originais, captadas pela câmera do JWST, não são as divulgadas nos meios de comunicação social. O JWST não clica o objeto fotografado como fazemos com nossas câmeras amadoras. Na realidade, há uma quantidade imensa de dados coletados que precisam ser tratados estatisticamente segundo as teorias vigentes a respeito dos fenômenos ópticos e da formação do universo. Aliás, foram essas teorias que balizaram o projeto e a construção do próprio telescópio, e previram o seu funcionamento. Em todo caso, nós humanos simplesmente não vemos a olho nu aquilo que o JWST registra — por exemplo, nós não vemos a radiação infravermelha emitida pelo Sol, mas sabe-se que ela contribui para o envelhecimento da nossa pele. As imagens que vemos oriundas do JWST são representações de como veríamos aqueles objetos celestes se eles fossem vistos na faixa visível do espectro. Há um processo de inferência científica sobre o que seria visto a olho nu, caso isso fosse realmente possível — não o é porque os objetos estão tão afastados que a luz visível emitida por eles a bilhões anos simplesmente não chega mais visível ao nosso cantinho particular do cosmo.

A principal operação artística na produção dessas imagens é a paleta de cores utilizadas em sua  colorização. O Hubble utiliza técnicas de espectroscopia: a paleta de cores é definida em função do espectro da luz emitida ou refletida pelos elementos químicos presentes nos objetos celestes observados. De fato, há equipes de cientistas-artistas responsáveis por decisões que no fundo são de natureza estética. Por exemplo, no espaço sideral não existem a “parte de cima” e a “parte de baixo” dos objetos celestes. A composição das fotos, a maneira como elas se organizam visualmente, sua orientação relativa, as linhas de composição que orientam nosso olhar etc., tudo isso são escolhas estéticas realizadas por profissionais altamente especializados nesse assunto. Para maiores detalhes, consultar a tese Percepção contemporânea da paisagem: a questão da distância na imagem aérea e astronômica, de Cristina Bonfiglioli.  

No caso do JWST, a captação em infravermelho permite colorizar as imagens em função da distância dos objetos, uma espécie de perspectiva de natureza cósmica. Lembremos que, segundo o efeito Doppler, a luz dos objetos mais distantes tende ao vermelho. Por isso, as imagens são colorizadas de tal forma que as galáxias mais distantes são coloridas em vermelho, enquanto as mais próximas em tons de branco ou azul. A imagem em duas dimensões, que vemos na tela do computador, carrega essa informação adicional, e podemos então inferir a profundidade da cena se atentarmos para a distribuição das cores na imagem.

Por tudo isso podemos dizer, sem hesitar, que as belíssimas imagens fornecidas pela NASA são obras de natureza científica e artística. Precisamos de uma vez por todas derrubar o preconceito de que essas duas esferas da inteligência humana são coisas estanques. Em outras palavras, já passou da hora de superarmos a cisão das Duas Culturas — por exemplo, que astrônomos não têm senso artístico e que artistas não se interessam por ciência. Muito pelo contrário, arte e ciência sempre cooperaram na história da Humanidade. De Galileu à James Webb, só não vê isso quem não quer.

Fontes:

Fonte da imagem destacada: NASA, ESA, CSA, and STScI

BONFIGLIOLI, C. (2022). Percepção contemporânea da paisagem: a questão da distância na imagem aérea e astronômica. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte.

FLUSSER, V. (1985). Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: HUCITEC.

 

 

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