Quem nunca ouviu a expressão “estou derretendo de calor”? (V.4, N.7, P.4, 2021)

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Tempo de leitura: 4 minutos
#acessibilidade Imagem da pintura surrealista de Salvador Dalí, “A persistência da memória” (1931), contendo relógios derretidos.

Texto escrito pelos colaboradores Fernando Zaniolo Gibran e Gustavo Muniz Dias

Quando éramos crianças há mais de 30 anos, nos saudosos anos 80, uma cena fazia parte do nosso cotidiano: centenas de tampinhas de refrigerante de garrafas de vidro incrustadas no asfalto onde existiam os populares “carrinhos de lanches” (muito antes dos “burgers” estarem na moda). Isso acontecia porque o intenso calor do verão, que em algumas cidades beirava os 40ºC, amolecia o piche do asfalto e, pelo trânsito dos veículos, as tampinhas derrubadas acabavam incorporadas às ruas e ali se acumulavam ao longo dos anos (agora sobrepostas pelas camadas de asfalto mais recentes).

Assim como essas tampinhas, existem muitos organismos vivos incrustados nas rochas do nosso litoral. Apesar de serem organismos marinhos e dependerem da água do mar para sobreviver e se reproduzir, esses animais e algas estão sujeitos aos movimentos diários das marés (fenômeno natural e periódico que ocorre por causa da atração gravitacional das águas oceânicas pela Lua e Sol). Quando a maré está alta, esses organismos estão submersos e, portanto, protegidos contra a desidratação e altas temperaturas, mas enquanto a maré está baixa ficam sujeitos à exposição solar por horas. Motivo pelo qual essa região ficou conhecida como a região do entre-marés.

Apesar da evolução ter proporcionado uma incrível resistência desses organismos do entre-marés a grandes variações de temperatura, vocês já devem estar pensando no quanto esses organismos marinhos podem ser prejudicados pelo aumento além do esperado na temperatura atmosférica, já que o vai e vem das marés faz parte das suas histórias de vida, porém os eventos extremos de temperatura são menos frequentes. Assim, justamente por ocorrerem próximos aos limites extremos de temperatura e dessecação, além dos quais nenhum organismo marinho consegue sobreviver, picos de calor combinados com marés baixas tendem a afetar mais ainda esses organismos, que por serem fixos ou de mobilidade reduzida, são incapazes de escapar para as regiões submersas.

Apesar de presenciarmos alguns eventos térmicos “atípicos” ao longo das nossas vidas, neste ano está ocorrendo uma onda de calor muito além do normal no oeste do Canadá e dos EUA, por causa de uma cúpula de ar quente de alta pressão estática que se estende da Califórnia à região ártica. Esta onda não tem paralelo na história recente dessas regiões, e causou a morte súbita de dezenas de pessoas que estavam expostas à temperatura do ar beirando os 50ºC. Como não poderia ser diferente, este evento “infernal” também afetou os organismos marinhos da região entre-marés, como estrelas-do-mar e moluscos que, pasmem, literalmente “derreteram”, cozidos vivos!

Estima-se que ao menos 1 bilhão de animais marinhos morreram, com significativa baixa nas suas abundâncias populacionais, o que afetou as comunidades naturais. O excesso de calor é perigoso porque acelera a desidratação, além de prejudicar o funcionamento e a sobrevivência dos organismos por alterar as estruturas proteicas prejudicando o metabolismo.

Atribuir qualquer evento único e excepcional como este às Mudanças Climáticas Globais demanda cautela, entretanto, a frequência de eventos climáticos extremos, como ondas de calor e, consequentemente tempestades, vêm aumentando nas últimas décadas. Um dos gases importantes do chamado “Efeito Estufa” (efeito natural que ajuda a manter o planeta aquecido e permitiu a existência e diversificação da Vida na Terra) é o CO2, que em excesso na atmosfera faz com que a Terra se torne muito mais quente — para terem uma ideia, a concentração de CO2 na atmosfera terrestre hoje é 35% mais alta do que as maiores concentrações que já existiram nos últimos 400 mil anos… Por causa do desmatamento, incêndios florestais, queimas de combustíveis fósseis, industrialização, entre outras perturbações humanas, a quantidade de gases do Efeito Estufa na atmosfera tende a aumentar.

Assim, os danos climáticos esperados poderão ser ainda piores dentro de apenas algumas décadas e, consequentemente, espera-se alterações drásticas nos ciclos da água, de matéria, fluxo de energia, e no funcionamento dos ecossistemas, além dos efeitos diretos na sobrevivência e ciclos de vida dos organismos como aqueles do entre-marés. A dúvida que fica é: será que nós humanos vamos sobreviver a esta “maré-baixa” global ou seremos como as tampinhas, meros vestígios do passado sobrepostos?

Fontes:

Fonte da imagem destacada: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Persistência_da_Memória

BBC News Brasil (30 de junho de 2021). “Canadá: o que explica a onda de calor relacionada a dezenas de mortes súbitas no país”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57672256

Notícias UOL: Meio Ambiente (13 de julho de 2021). “Calor do Canadá cozinhou mariscos, mexilhões e moluscos vivos a céu aberto” Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2021/07/13/calor-do-canada-cozinhou-mariscos-mexilhoes-e-moluscos-vivos-a-ceu-aberto.htm

Relyea, R. & R.E. Ricklefs. 2021. A Economia da Natureza. 8ª edição. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro.

Para saber mais:

Vídeo Causes and Effects of Climate Change do canal do National Geographic no YouTube

Mudanças Climáticas e Biodiversidade serão tema da 2ª edição da série Conferências FAPESP 60 anos. Disponível em: https://agencia.fapesp.br/mudancas-climaticas-e-biodiversidade-serao-tema-da-2-edicao-da-serie-conferencias-fapesp-60-anos/36373/

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