#acessibilidade: temos uma ilustração com microrganismos cartunescos, todos coloridos e com um leve sorriso. Em destaque, ao centro, um microrganismo verde, arredondado como um vírus. Apesar dos dentes amarelados e levemente pontiagudos, sua expressão é gentil e amigável. O fundo, esfumaçado em amarelo, possui algumas bactérias cilíndricas flutuando em tons azuis.
Texto escrito por Wagner Rodrigo de Souza
A presença de microrganismos no solo, chamada de microbioma, é composta por diversas classes de bactérias, assim como ocorre na microbiota humana presente em nossos intestinos. A estrutura composicional e as reações químicas realizadas por esses micróbios não são as mesmas. No entanto, existem muitas semelhanças na forma como humanos e plantas dependem da simbiose com seus micróbios para nutrição, defesa contra patógenos, resiliência e saúde geral.
A vida animal nasceu em um mundo microbiano há cerca de 430 milhões de anos. A coexistência com os micróbios impulsionou a evolução do tubo digestivo. Nosso organismo não possui moléculas suficientes para processar toda a energia de nossos alimentos; por isso, no intestino, a população microbiana aumenta e aproveita os restos, em benefício das células do cólon que absorvem esses resíduos como fonte principal de energia.
Em seres humanos, a colonização dos amigos microbianos ocorre principalmente durante o parto, através do canal vaginal. Crianças nascidas por cesariana têm uma configuração microbiota diferente nos primeiros meses, e acredita-se que expor o recém-nascido às secreções vaginais da mãe possa ajudar a estabelecer uma microbiota mais saudável. Além disso, as mães investem cerca de 30% do suprimento de energia em seu leite materno para produzir Oligossacarídeos do Leite Humano (OLMs) que seus bebês não conseguem absorver. Os cientistas coçaram a cabeça ao fazer essa descoberta, pensando no porquê haveria a produção destes compostos, mas hoje se sabe: os OLMs são necessários não para a alimentação dos bebês, mas sim para que se mantenha o microbioma, que utilizam esses pequenos açúcares como alimento!
O mesmo acontece com as plantas: de 30 a 40% dos produtos da fotossíntese delas são direcionados para o solo através de seus exsudatos de raízes: quase todas as plantas investem em sua comunidade de micróbios e fungos, que expandem suas raízes, buscam alimentos mais distantes, completam suas capacidades com enzimas externalizadas que disponibilizam minerais que, de outra forma, seriam inacessíveis, especialmente fósforo. Estima-se que a comida que as plantas obtêm dos fungos em troca represente 90% de sua biomassa. Além da ajuda crucial que sua microbiota de raízes oferece para nutrição, também é uma linha de proteção muito importante.
A microbiota do intestino e das raízes também atuam como a primeira linha de defesa contra infecções. Os mecanismos de proteção incluem barreira contra patógenos, estimulação imunológica e absorção de nutrientes. Parte da defesa que ocorre nas plantas é muito semelhante ao que ocorre no intestino, a competição com patógenos. Se houver riqueza microbiana suficiente no local, os agentes causadores de doenças não têm chance de se estabelecer ou encontrar alimento. Outro mecanismo de proteção ocorre através do antagonismo direto (quando os simbiontes microbianos produzem antibióticos) — e devemos lembrar que a maioria das ferramentas antibióticas hoje vem de micróbios do solo.
A concentração de micróbios no solo de um jardim ou floresta varia entre 100 milhões e 1 bilhão de bactérias por colher de chá (ou por grama). Isso é um pouco menos do que o encontrado no intestino inferior, mas no geral não está longe da concentração bacteriana no intestino (de 10 mil no jejuno, a 10 milhões no íleo até 1 trilhão no cólon). O que isso diz é que a presença e a abundância de bactérias desempenham um papel fundamental em ambos os ecossistemas. Embora não desempenhem a mesma partição de metabolismo, o solo atua como reservatório de micróbios para a planta, que pode ser transferido para o animal — incluindo humanos — que come a planta. Consequentemente, a riqueza do solo pode contribuir para um microbioma intestinal diversificado.
Podemos concluir, ao contrário do que muita gente imagina, que micróbios não são apenas vilões para nossa saúde ou para o equilíbrio ambiental, eles podem assumir o papel de “mocinhos”. Assim, é preciso cuidar bem dos nossos amigos invisíveis que protegem humanos e plantas. Esses heróis promovem a diversidade de fontes de alimentos, nossa ingestão de plantas e fibras, reduzindo o consumo de alimentos processados que incluem conservantes, melhorando nossa exposição à natureza e ao solo, e sendo fisicamente ativos. O aumento do uso de antibióticos, a utilização de fertilizantes sintéticos e de pesticidas (até mesmo nas papinhas!) está destruindo nossos microbiomas.
Todavia, ainda há tempo para restaurarmos a simbiose, praticando a agricultura regenerativa e diminuindo o uso indiscriminado de antibióticos. Compreender a ecologia do solo e as simbioses específicas dos diferentes tipos de plantas com diferentes micróbios e proporções de fungos versus bactérias é importante para oferecer a cada planta o equilíbrio certo de micróbios, pH e nutrição de que ela precisa.
E como tudo está interligado, restaurar as simbioses do solo também ajudará a nutrir nossa saúde, porque os alimentos produzidos em solos saudáveis são mais ricos em micronutrientes que contribuem para a diversidade de nosso microbioma intestinal e protegem contra oxidação, inflamação e até mesmo câncer. O mundo fica melhor quando todos colaboram, inclusive humanos e micróbios.
Fontes:
Fonte da imagem destacada: Freepik – Watercolor germs cartoon illustration
Para saber mais:
Garwood, R.J., Edgecombe, G.D. Early Terrestrial Animals, Evolution, and Uncertainty. Evo Edu Outreach 4, 489–501 (2011). https://doi.org/10.1007/s12052-011-0357-y
The Hidden Half of Nature: The Microbial Roots of Life and Health. David R. Montgomery and Anne Biklé. https://www.goodreads.com/book/show/28789732-the-hidden-half-of-nature
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