Oppenheimer e as cientistas apagadas da história (V.6, N.7, P.3, 2023)

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Tempo de leitura: 7 minutos
#acessibilidade: Fotografia em preto e branco, onde no centro dela se encontra a física Lise Meitner rodeada por duas estudantes ao seu lado direito e duas ao seu lado esquerdo, na Bryn Mawr College, Pensilvânia.

Texto escrito por Artúr Franz Képpler

Inspirado pela campanha de lançamento do filme de Christopher Nolan, Oppenheimer, pensei em um enredo de um filme com histórias reais de cientistas apagadas dos livros-texto. Por quê foram canceladas? Simplesmente porque eram mulheres.

O primeiro ato deste filme seria um spin-off do aguardado Oppenheimer. Inclusive o próprio apareceria aqui, mas como ator coadjuvante. Estamos em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial. Albert Einstein e Lisa Meitner enviam uma carta para o então presidente dos Estados Unidos, alertando-o sobre o risco de desenvolvimento de uma bomba nuclear pela Alemanha nazista. O alerta serve de estopim para o lançamento do projeto norte-americano de desenvolvimento da sua bomba nuclear, a ser coordenado pelo condecorado cientista J. R. Oppenheimer. Certamente, você já ouviu falar de Einstein e Oppenheimer. Mas quem era Lisa Meitner? 

Aqui surge nossa primeira protagonista, uma grande cientista que fugiu do regime nazista e desenvolveu, com poucos recursos, o arcabouço teórico para explicar a energia gerada por sucessivas fissões nucleares, processo denominado reação em cadeia. Com seus cálculos foi possível controlar o processo e utilizá-lo na manufatura de bombas nucleares. Os cálculos foram embasados em experimentos realizados na Alemanha, no laboratório de Otto Hahn, colaborador e usuário dos conhecimentos e cálculos de Lisa. Em 1944, Otto e Lisa são condecorados com o Prêmio Nobel de Química, pela “descoberta da fissão de núcleos pesados”. Puxa, perdão, li o envelope errado. Lisa não ganhou a medalha. O comitê ignorou sua indispensável contribuição científica, uma vez que Otto não a mencionou nas suas publicações. Otto aproveitou que tudo o que trocavam era feito de maneira clandestina, visto que ela era fugitiva do 3º Reich e ele era um pesquisador alemão. Hoje sabemos da importância e relevância de Lisa na área da química nuclear, graças a uma geração de historiadores e meios de comunicação antes não existentes, que estão trazendo à tona a verdadeira história por trás daquela contada pelos homens que estão no poder.

Falando em novos meios de comunicação, continuaremos nossa história recontando outro feito científico descoberto durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui entra outra protagonista, Hedy Lamarr (falamos dela anteriormente aqui). Se você buscasse seu nome antes de 1997 saberia apenas que ela foi uma grande atriz de Hollywood. Ela fez inúmeros filmes e, por ser muito bonita, era escalada apenas para papéis de femme fatale. Apesar de tentar fugir do estereótipo erotizado, não a deixavam explorar seu intelecto em seus papéis. Antes de fugir da Áustria e migrar para os Estados Unidos, Hedy foi casada com Friedrich Mand, um importante fornecedor de artefatos militares para os regimes facista italiano e nazista alemão, que exibia Hedy como um troféu nos suntuosos jantares de negócios que eram oferecidos em sua casa. Astuciosa, fingia ser uma ouvinte boçal e anotava todos os planos e tecnologias de guerra que eram discutidos na sua presença. Refratária à guerra e aos regimes autoritários, encontrava-se com cientistas e lia tudo que existia de material de ciência aplicada no castelo onde era mantida como prisioneira. Quando fugiu, levou consigo um vasto conhecimento sobre os inimigos. Acelerando a história e chegando ao ápice de sua sagacidade: Hedy e o pianista George Antheil criaram um sistema de comunicação baseado em escalas musicais, sistema este que poderia embaralhar frequências de sinais de rádio, sendo então capaz de bloquear o sistema de navegação de mísseis. O alvo seriam os mísseis dos letais submarinos alemães. Hedy e George submeteram a ideia ao Departamento de Guerra norte-americano, que o recusou sumariamente, em junho de 1941. Como dar crédito a uma atriz e a um pianista desconhecido? Hoje esse sistema é usado como base para modernas tecnologias de comunicação, do Wi-Fi à telefonia celular. Nenhum dos dois ganhou um centavo com a invenção, apesar de a terem patenteado em 1942. Apenas em 1997 Hedy Lamar recebeu menção honrosa “por abrir novos caminhos nas fronteiras da eletrônica“. Guardem esta condecoração.

No segundo ato, sairemos das frentes de batalha, para dentro de laboratórios de pesquisa. Não, não vamos chamar aqui Marie Curie, que por sinal é um ponto muito fora da reta na ciência. O  trabalho de Marie Curie foi merecidamente reconhecido com DOIS Prêmios Nobel (já leu a nossa resenha sobre o filme Radioactive?). Avançaremos para a década de 1950. Estamos em Londres, onde Rosalind Franklin se dedicava ao estudo de difração de raios-X, técnica imprescindível para a elucidação da estrutura tridimensional da dupla hélice do DNA. A interpretação dos dados cristalográficos do DNA feitos por Rosalind foi apresentada sem o consentimento dela, por seus colegas Maurice Wilkins e Max Perutz, para James Watson e Francis Crick. Sabe-se hoje que o irretocável trabalho experimental de Rosalind foi crucial para a elucidação da estrutura do DNA e, dessa forma, Rosalind, Watson e Crick ganharam o Nobel de Medicina em 1962.[ref] Ops, peguei novamente o envelope errado. Rosalind não ganhou o prêmio, pois sua contribuição foi ignorada!

Por sinal, o mesmo James Watson que a marginalizou, negou veementemente sua contribuição e prejudicou a imagem dela como cientista, constante e sistematicamente vomitava frases sexistas, antissemitas e racistas. Mesmo assim, James ganhou inúmeros prêmios, financiamento, prestígio e lugar de destaque no meio acadêmico. Muito recentemente (somente em 2018 , aos 90 anos!),[ref] começou a perder láureas e títulos por defender – e, na verdade, continuar a defender abertamente – a falácia da supremacia branca.

Respiremos, pois passamos da pior parte do nosso filme.

Aqui entra em cena nossa última protagonista. Katalin Karikó, cientista húngara, que sempre teve como linha de pesquisa o RNA mensageiro. Desde a década de 70, Katalin acreditava na possibilidade de usar essa biomolécula para combater doenças. Após inúmeros infortúnios (muitos mesmo!), continuou acreditando que poderia entregar algo relevante para a humanidade.[ref] Hoje, vice-presidente da BioNTech, Katalin ainda deve estar comemorando o sucesso de uma das vacinas usadas no combate ao vírus Sars-CoV-2, que usou como ativo o RNA mensageiro do vírus responsável pela pandemia. Talvez Katalin, hoje com quase 70 anos, seja a única das quatro protagonistas menosprezadas (dentre tantas outras), que conseguirá ganhar um Prêmio Nobel. 

Peço licença para um intervalo deste recorte histórico para deixar algumas provocações. 

Todas as quatro cientistas são vistas hoje como mães: “mãe do celular”, “mãe da vacina”… Muito além disso, receberam menções honrosas, condecorações e reconhecimento póstumo ou na fase final de suas carreiras pelos seus feitos.

Pergunto:

  • De que adianta isso?

  Alguns podem responder…

  • Ah, mesmo que tardiamente, entrarão para a história da ciência…. 

PÁRA!

Chega de aceitar a narrativa de que fama e holofotes são formas de recompensar a falta de reconhecimento, em tempo. Das quatro magníficas cientistas citadas aqui, para não dizer das milhares que passaram e talvez ainda passem por isso cotidianamente, foi ceifada a oportunidade de mostrar sua capacidade intelectual. Muitas vezes, não receberam financiamento, cargos estáveis em universidades, nem a chance de coordenar grupos de pesquisa. Apenas trabalharam nos bastidores e com grande frequência viram suas descobertas serem usadas pelos homens de gravata.

Quantas meninas poderiam ter se inspirado nessas grandes mulheres, quantas se sentiriam representadas e seguiriam para a carreira científica? Ao verem somente homens de jaleco como representantes e guardiões do conhecimento científico, muitas devem ter pensado “ciência não é para mim” e migraram para outras profissões.

Mas o que um homem branco, professor universitário e representante máximo da “elite brasileira” vem aqui falar do machismo estrutural? Deixo aqui uma constatação e com ela outra provocação: sou beneficiário desse sistema.

Pois bem, muito além de homem, sou filho de uma biomédica e neto de uma médica que foram levadas a renunciar suas posições profissionais. Em um contexto um pouco diferente das nossas protagonistas, porém estruturado no mesmo machismo, foi inoculado na mente de minhas matriarcas que foi opção delas recusar um cargo de chefia, que foi opção delas não viajar para congressos e debater suas ideias com seus pares, que foi opção delas parar de trabalhar para “cuidar da família”. Elas foram obrigadas a acreditar que foi delas a escolha de algo que já estava definido. Dito isso, hoje tenho clareza suficiente para entender que fui criado em um ambiente no qual grande parte das figuras femininas do meu entorno me entregaram um cuidado carregado de esgotamento e frustração. Diminuídas e não reconhecidas, o machismo estrutural não “apenas” moldou a sociedade em que cresci; ele destruiu sonhos.

Nós homens podemos fechar os olhos e perpetuar este ciclo nefasto. Ou seguir pelo caminho que escolhi: estudar e lutar contra o machismo. Falar publicamente e expor os horrores do machismo é uma das ferramentas de luta. Existem tantas outras. Encontre a sua.

Fechada a caixa de provocações, apresento aqui o último ato de nosso filme. Vamos finalizar com pura ficção. Estamos em 1945 e Rosa Parks é a presidente dos Estados Unidos. Ela nomeia Lisa Meitner para comandar o projeto Manhattan. Passa um ano e a Segunda Guerra Mundial está acabando. Mesmo sob pressão, jamais, jamais passa pela cabeça das duas admitir o lançamento de bombas nucleares em seres humanos. Com isso, a minha, a sua e a nossa história tomam rumos diferentes, sob o olhar e o governo de figuras femininas. Lá no norte e aqui no sul.

Fontes:

Fonte da imagem destacada. Lise Meitner, retrato alfabético. Mujeres con Ciencia. Disponível em: https://mujeresconciencia.com/2021/05/14/lise-meitner-retrato-alfabetico/ & Lise Meitner: Her Life in Modern Physics. American Institute of Physics. Disponivel em: https://www.aip.org/history-programs/physics-history/teaching-guides/lise-meitner-her-life-modern. Acesso em 11 de julho 20233.

The Discovery of the Double Helix, 1951-1953. Disponível em: https://profiles.nlm.nih.gov/spotlight/sc/feature/doublehelix.

El País: A volta do Prêmio Nobel que não abandona suas teorias racistas sem base científica. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/03/internacional/1546527532_263106.html.

[ref] CNN: Cientista “rebaixada” teve trabalho usado como base da vacina contra o Covid-19. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/cientista-rebaixada-teve-trabalho-usado-como-base-da-vacina-contra-o-covid-19/) & A mãe da vacina contra a covid-19: “No segundo semestre, poderemos provavelmente voltar à vida normal”. Disponível em https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-12-27/a-mae-da-vacina-contra-a-covid-19-no-segundo-semestre-poderemos-provavelmente-voltar-a-vida-normal.html.

Existem diversos livros e biografias que tratam da vida e trajetória da ativista Rosa Parks. A biografia “The Rebellious Life of Mrs. Rosa Parks” , escrita por Jeanne Theoharis, examina suas seis décadas de ativismo. Com o mesmo título e usando o livro como base, foi lançado um documentário em 2022.

[ref] James Watson: Scientist loses titles after claims over race. Disponível em https://www.bbc.com/news/world-us-canada-46856779.

 

 

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3 thoughts on “Oppenheimer e as cientistas apagadas da história (V.6, N.7, P.3, 2023)

  1. Parabéns pelo seu texto. Você deixa uma importante e necessária reflexão sobre o quanto ainda as mulheres cientistas são historicamente apagadas e o quanto os homens se beneficiam disso. Faço questão de compartilhar esse texto com meus amigos e conhecidos que fazem questão de exaltar o valor da ciência e ignoram sistematicamente a contribuição das cientistas.

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