Texto escrito pela colaboradora Larissa Prando Vicente
O que o caso da Prevent Senior, ocorrido em setembro de 2021, juntamente com os acontecimentos durante a pandemia em relação a tratamentos e vacinas, nos mostram sobre a ética em pesquisa?
Primeiramente precisamos contextualizar duas importantes informações: o caso supracitado e o quê é pesquisa clínica. Então, começaremos pelo escândalo:
A Prevent Senior, plano de saúde especializado no atendimento ao idoso, foi alvo de investigação e passou pela CPI da COVID após denúncias de distribuição de medicamentos ineficazes contra o coronavírus, o famoso Kit Covid. Este kit contém hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e até ozonioterapia, todos eles sem eficiência comprovada cientificamente para o combate ao coronavírus. Além disso, a empresa foi acusada de aplicar tratamentos experimentais sem autorização dos próprios pacientes, de fraude em pesquisa e alterações de declarações de óbito.
O próximo passo é entendermos melhor o que é a chamada pesquisa clínica. Os estudos de novos tratamentos e terapias ocorrem por etapas, sendo elas:
(i) a pesquisa básica, a que ocorre em bancadas de laboratório; aquelas que os pesquisadores fazem os estudos e síntese das moléculas e compostos promissores; testes in vitro e todas as metodologias pertinentes à pesquisa em questão.
(ii) A fase pré-clínica, onde se testa em modelos animais, verificando a eficácia e a segurança de tal molécula estudada. Destaca-se que esta fase é repleta de regulamentações sérias e órgãos fiscalizadores, assim como as pesquisas com seres humanos. Para os animais também existem Comitês de Ética em Pesquisa e os testes nos bichinhos só ocorrem após aprovação do mesmo.
Após a substância ser aprovada nessas fases anteriores, passamos para os ensaios clínicos que se dividem em 4 fases:
(i) A fase I consiste em testes de tolerabilidade e eficácia em grupos pequenos de voluntários (sim, precisa se voluntariar e ter total consentimento para participação, pasmem!). Esses pacientes são geralmente sadios, no caso de novas terapias oncológicas, por exemplo, essa última informação não é aplicada.
(ii) A fase II já é em maior número de voluntários com a patologia indicada e há a confirmação de segurança, indicação de eficácia, avaliação de dose e frequência necessária para administração ou ingestão do medicamento.
(iii) A fase III é multicêntrica, ou seja, ocorre em diferentes centros de várias regiões de todo o mundo e sempre existe um comparador (medicamento que já existe no mercado e/ou já é utilizado no SUS). Essa fase tem como objetivo confirmar a eficácia e segurança, avaliar os eventos adversos, o risco/benefício e, para isso, normalmente esses estudos são randomizados, ou seja, os participantes são sorteados aleatoriamente para o “braço” do comparador (aquele medicamento padrão, já usado ou até mesmo um placebo, dependendo do estudo) ou “braço” dessa medicação nova, podendo ou não ser “cego” (estudos em que ninguém sabe o que aquele voluntário está recebendo para não haver conflito de interesse).
(iv) Finalmente, a fase IV ocorre com a aprovação e liberação para comércio dessa medicação, ela tem como objetivo acompanhar os efeitos dos medicamentos a longo prazo, incluindo o acompanhamento de novas reações adversas (não sei se vocês já viram em algum medicamento que tomam a anos uma atualização de bula com inclusão de algum efeito colateral).
Agora, lembrado o caso e entendido como ocorre uma pesquisa clínica, precisamos voltar no tempo para relembrarmos a cronologia da pesquisa clínica. A história da pesquisa clínica é antiga, podemos citar o estudo observacional entre dietas proteicas e dietas vegetarianas ocorrido em 564 a.C, mas neste texto estaremos mais interessados em voltar ao nazismo para então entendermos a problemática da ética em pesquisa que ocorreu em 2021 e que ainda ocorre e às vezes não temos essa visão.
Durante a Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração, o número de experimentos em humanos aumentou significativamente, fugindo de qualquer respeito à dignidade humana. Muitos medicamentos foram utilizados em indivíduos “saúdaveis” (dentro dos limites que o holocausto permitia) e sem contextos éticos e legais. Alguns exemplos são a sulfonamida, alguns psicofármacos, drogas psicoativas, principalmente sedativos da família dos barbitúricos durante o processo de eutanásia, além de diversas mutilações, transplantes, esterilizações, “poções” para cura de tuberculose, febre tifóide ou outras patologias que as vítimas contraiam durante esse confinamento.
Após a 2a Guerra, o Tribunal de Nuremberg ocorreu para a condenação dos nazistas contra os crimes de guerra. Em 1947 o Código de Nuremberg foi implementado como princípios éticos para pesquisas em humanos, sendo um total de dez princípios básicos determinando as normas do consentimento informado e da ilegalidade da coerção, regulamentando a experimentação científica e defendendo a beneficência como um dos fatores justificáveis sobre os participantes dos experimentos.
Em 1964 a Associação Médica Mundial também redigiu princípios éticos, perante algumas falhas vistas no código anterior, ficando conhecidas como Declaração de Helsinque. Todos os testes clínicos devem ser conduzidos de acordo com essa Declaração, em conformidade com as Boas Práticas Clínicas (Good Clinical Practices – GCP) e as resoluções e normas vigentes que regem a Pesquisa Clínica. Com base nisso, todos os participantes possuem seus direitos, segurança, saúde, privacidade, dignidade e poder de escolha garantidos.
A Resolução nº 466 de 12 de Dezembro de 2012 vigente no Brasil, determina que todos os voluntários de pesquisa precisam, obrigatoriamente, assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de participar da pesquisa. Neste TCLE, todas as informações do estudo, procedimentos que ocorrerão e até quantidade em mL de sangue coletado, precisam estar descritos em linguagem clara e informal. Para os menores de idade ou que possuem representantes legais, há o Termo de Assentimento, onde esses representantes tomam conhecimento e assinam comprovando a participação.
Deve-se ressaltar também que, além de todas essas normas descritas, todos os órgãos regulatórios e um Comitê de Ética estão envolvidos no processo, um Centro de Pesquisa precisa manter a ciência, bem como atualização de qualquer informação por meio de submissões, notificações e relatórios para esse comitê e para a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
No caso do convênio, a empresa expôs seus pacientes a tratamentos experimentais sem ciência desses comitês e órgãos regulatórios, além de não haver qualquer direito básico garantido pelas resoluções, declarações e códigos citados acima. Durante anos, os métodos científicos e os ensaios clínicos nos trouxeram tratamentos e equipamentos novos para diversas patologias e, hoje, conseguimos uma vacina eficaz e segura, uma vez que todos os parâmetros foram seguidos e ignorar isso é um retrocesso tanto na história quanto na pesquisa.
Outra problemática é ouvir da população e, inclusive, ver em alguns materiais jornalísticos a palavra “cobaia” para se referir aos participantes da pesquisa e/ou as pessoas que gozam da oportunidade de receber medicamentos e vacinas novas (como por exemplo a abertura da campanha de vacinação contra COVID-19 para as crianças). O uso deste termo traz uma conotação negativa e falsa acerca dos estudos científicos que seguem TODOS os padrões de segurança e qualidade que este texto trouxe.
Por fim, para aqueles leitores que gostariam de saber mais sobre o tema abordado aqui e para exemplificar de outra forma como a falta de ética em estudos impacta na vida e no psicológico dos envolvidos, recomendo o documentário Três Estranhos Idênticos.
Fontes:
Boas Práticas Clínicas: Documento das Américas. Organização Pan-Americana da Saúde, 2005. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/boas_praticas_clinicas_opas.pdf>
CARBONIERI, F. Experimentos Médicos Nazistas. Academia Médica, 2018. Disponível em: <https://academiamedica.com.br/blog/experimentos-medicos-nazistas>
Código de Nuremberg. Tribunal Internacional de Nuremberg, 1947. Disponível em: <https://www.ghc.com.br/files/CODIGO%20DE%20NEURENBERG.pdf>
Declaração de Helsinque. Associação Médica Mundial, 1964. Disponíevel em: <https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/declaracao_de_helsinque.pdf>
López-Muñoz F, Alamo C, García-García P, Molina JD, Rubio G. The role of psychopharmacology in the medical abuses of the Third Reich: from euthanasia programmes to human experimentation. Brain Res Bull. 2008 Dec 16;77(6):388-403. doi: 10.1016/j.brainresbull.2008.09.002. Epub 2008 Oct 10. PMID: 18848972.
Pesquisa clínica permite desenvolver e melhorar tratamentos. Roche, 2017. Disponível em: <https://www.roche.com.br/pt/por-dentro-da-roche/pesquisa-clinica-permite-desenvolver-e-melhorar-tratamentos.html>
Prevent Senior: entenda as acusações contra a empresa envolvendo pesquisa sobre cloroquina. G1 SP, 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/16/prevent-senior-entenda-as-acusacoes-contra-a-empresa-envolvendo-pesquisa-sobre-cloroquina.ghtml>
Quais as fases de uma pesquisa clínica? Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica. Disponível em: <https://www.sbppc.org.br/fases-de-uma-pesquisa-clinica>
RESOLUÇÃO Nº 466, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012. Disponível em: <https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf>
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