#acessibilidade Fotografia do interior da gruta da Lapinha, localizada no Parque do Sumidouro em Lagoa Santa, MG.
Logo abaixo da nossa majestosa Floresta Amazônica e dos demais biomas nacionais existe um universo singular que vem sendo ameaçado pelas nossas próprias leis. Esse universo é repleto de estalactites, estalagmites e parece cenário de filme. São as maravilhosas cavernas brasileiras! Temos mais de 20 mil cavernas catalogadas oficialmente, mas estimativas indicam que possam existir mais de 300 mil. Elas abrigam uma imensa biodiversidade, além de guardar vestígios culturais de nossos antepassados. As cavernas brasileiras escondem grandes histórias que ainda não conseguimos contar e que talvez nunca consigamos, pois estão sob a mira da mineração e do agronegócio.
Grutas, lapas, buracos, tocas e muitos outros nomes são dados ao que comumente conhecemos por cavernas. Essas cavidades subterrâneas são formadas ao longo de milhares ou milhões de anos. São moldadas de diversas formas, principalmente pela dissolução das rochas, mas também por meio da erosão de ondas do mar, da ação de bactérias e do derrame de lava, por exemplo.
O ecossistema das cavernas é bastante delicado e altamente estável. O seu interior é permanentemente escuro e essa ausência de luz impede o crescimento de plantas. Dessa forma, o alimento primário para os organismos cavernícolas é transportado do meio externo através da água, do vento ou de animais. Além disso, muitos organismos são altamente especializados, podendo nunca sair da caverna!
Quando falamos de animais que vivem em cavernas você pensa primeiro em qual? Provavelmente sua resposta foi morcego! Os morcegos cavernícolas dormem no teto das cavernas subterrâneas, mas diariamente saem delas em busca de alimento. Eles visitam flores, comem insetos e frutas, atuando como grandes polinizadores e dispersores de sementes. Os morcegos também levam para o interior das cavernas grandes quantidades de matéria orgânica por meio das fezes, que servem de alimento para os invertebrados que habitam o ambiente.
#acessibilidade Fotografia de um morcego da espécie Glossophaga soricina, visitando uma flor.
Atualmente existem sete espécies de morcegos ameaçadas de extinção, das quais quatro são cavernícolas. Essas quatro espécies estão ameaçadas justamente por conta da destruição de cavernas e, consequentemente, de seu habitat!
A relevância dessas formações não para por aí! Em 1835, o dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) se mudou para a região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Ele foi um dos primeiros a realizar descrições científicas detalhadas das cavernas brasileiras, mas seu verdadeiro foco estava nas pesquisas fósseis. Lund foi extremamente importante para a pesquisa na área e, apesar de estrangeiro, é considerado o pai da paleontologia e da espeleologia brasileiras.
Lund e seus companheiros zoólogos e botânicos deixaram um grande legado. Exploraram mais de duzentas grutas brasileiras, encontrando cerca de dez mil fósseis, incluindo exemplares da megafauna extinta, como a capivara gigante, o lobo de caverna e o grande jaguar! Além disso, também encontraram um cemitério contendo esqueletos humanos! Esse conjunto de fósseis ficou conhecido como o “Homem de Lagoa Santa”, contribuindo para a arqueologia brasileira e reconstruindo parte do nosso passado pré-histórico.
A região de Lagoa Santa é tão importante para a arqueologia que, ao longo do tempo, foram encontrados cerca de 200 a 500 fósseis humanos. Formando, portanto, a maior coleção osteológica do Holoceno Inicial das Américas! Atualmente os materiais da coleção são essenciais para compreender o processo de migração dos primeiros grupos humanos para o continente americano.
#acessibilidade Fotografia de esqueleto enterrado em posição fetal. Faz parte do acervo do Museu Arqueológico da Região de Lagoa Santa.
Em 2002 foram realizados testes radiocarbônicos nos achados e a descoberta foi surpreendente! Acreditava-se que a ocupação humana nas Américas havia se iniciado por volta de 6 mil anos atrás, mas a datação indicou que os ossos analisados tinham 10 mil anos de existência. Isso recolocou a região de Lagoa Santa na discussão da pré-história no continente americano.
Em sua época, Lund já havia deixado um grande legado por colocar a região em evidência para a comunidade científica. Logo arqueólogos do mundo todo vieram para estudar as cavernas da região. E foi na década de 70 que o fóssil de Luzia foi encontrado, representando uma revolução nos estudos do povoamento das américas! A datação de Luzia fica entre 11 mil e 11,5 mil anos, sendo um dos crânios mais antigos de todo o continente americano. Foi identificado que ela e seu povo possuíam morfologia craniana semelhante à dos povos da África e Oceania, enquanto os povos originários do continente americano são mais próximos biologicamente dos habitantes da Ásia.
#acessibilidade Crânio de Luzia e sua reconstrução que ficavam localizados no Museu Nacional do Rio de Janeiro, antes do incêndio de 2018.
São necessários mais estudos para entender e teorizar como ocorreram as correntes migratórias, mas isso só será possível escavando e investigando nossas cavernas!
A relevância das cavernas já havia sido provado ao mundo há muito tempo, mas foi apenas no final da década de 80 que o Brasil iniciou sua preservação. A Constituição Federal de 1988 reconheceu as cavernas como patrimônio cultural, em razão de sua relevância ecológica e científica. No mesmo sentido, o decreto presidencial de 1990 determina que todas as cavernas naturais brasileiras devem ser tratadas como patrimônio nacional e, portanto, devem ser preservadas.
Em 2008, um novo decreto determinou que as cavernas deveriam ser tratadas de acordo com sua relevância, podendo ser máxima, alta, média e baixa. Essa classificação depende de atributos ecológicos, biológicos, hidrológicos, paleontológicos, cênicos, histórico-culturais e socioeconômicos. Foi estabelecido, portanto, que as cavernas de máxima relevância não poderiam ser objeto de impactos negativos irreversíveis.
Mas, em 2019, num processo unilateral, o Ministério de Minas e Energia do Brasil propôs uma nova redação, abrindo espaço para que as cavernas de máxima relevância pudessem ser destruídas. Na mesma linha, recentemente, em um decreto de 2022 publicado pelo presidente da República Jair Bolsonaro, foi revogada a lei de proteção das cavernas de máxima relevância. Trechos do decreto foram suspendidos pelo Ministro Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal, prevalecendo, portanto, a proibição da exploração econômica de cavernas de máxima relevância.
As cavernas do Brasil são patrimônios insubstituíveis e de importância incalculável. Elas guardam parte da história da humanidade e abrigam organismos singulares. Esse bem não pode ser destruído em prol da exploração ambiental e deve ser preservado. Nós, brasileiros, devemos dar luz a esse mundo oculto para que possamos reconhecer seu valor. Caso contrário iremos perder um tesouro que jamais soubemos ter.
Fontes:
Fonte da imagem destacada: Rafael Rodrigues Camargo / Wikipedia
Fonte da imagem 1: Juan Carlos Vindas / Carnivora.net
Fonte da imagem 2: Fellipe Abreu / 360meridianos.com
Fonte da imagem 3: metropoles.com
https://www.icmbio.gov.br/cecav/cavidades-naturais-subterraneas.html
https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/T3kC8V7R79x4MsMW3gXpPZk/?lang=pt
http://www.seb-ecologia.org.br/revistas/indexar/anais/viiiceb/palestrantes/Xavier.pdf
https://see.ufop.br/espeleologia
https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/o-homem-de-lagoa-santa-2/