Adeus, 2024. (V.7, N.12, P.5, 2024)

Facebook Instagram YouTube Spotify
Tempo de leitura: 6 minutos
#acessibilidade: A imagem é uma ilustração com um fundo de um alaranjado fresco, um átomo bege desenhado ao centro com “Retrospectiva 2024” envolta, num tom de verde neutro. O átomo parece emanar uma cor rosada que se dissipa num amarelo suave.

Texto escrito por Eduardo Leme

Outro ano que se encerra. Quase o quinto nesse nosso mundo pós-pandemia que segue entre caóticos altos e baixos.

O Nobel condecorou pesquisas que souberam aplicar o potencial da IA, tecnologia que avança de maneira complexa. O massacre na Faixa de Gaza conseguiu algo difícil: se agravou. Assange livre, Trump novamente, tremores, enchentes e queimadas recordes, cadeirada à la paulistana, um pouco de paz (bloqueio do Twitter), surto de dengue, discussões sobre abuso sexual e racismo fortemente associadas ao futebol – pautas valiosas como as também levantadas durante as olimpíadas. Como de costume, muita coisa…

Nesse texto, escrevo sobre 5 acontecimentos do ano em diferentes áreas, relembrados por colaboradores do Guia, cada um com seu respectivo impacto.

1. Um viajante do tempo

Ainda em 2020, buscando por presas de mamutes na Sibéria, exploradores acabaram encontrando boa parte de um felino mumificado. Acontece que a análise publicada na Scientific Reports em novembro concluiu que o gatinho, congelado com apenas 3 semanas de vida, teria vivido há cerca de 35 mil anos! “Pela primeira vez na história da paleontologia, um mamífero extinto que não possui análogos na fauna moderna foi estudado”, destacam os autores do artigo. Alexey V. Lopatin, diretor do Instituto Paleontológico na Academia Russa de Ciências e principal nome da pesquisa indicou ao blog Gizmodo que a possibilidade de extrair e analisar o DNA desse filhote de Homotherium latidens faz parte dos próximos passos da pesquisa. Só espero que conheçam Jurassic Park…

2. Grande avanço na luta contra o HIV

A luta contra o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV – *sua sigla em inglês), causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS*), é histórica, entre muitos fatores,  pela sobreposição mútua entre ciência e sociedade (inclusive, o mês de Dezembro é marcado pela campanha de conscientização sobre a Aids e outras ISTs, assunto interessante para um texto futuro…).

Mas o que ocorreu esse ano? Uma quase-vacina! A farmacêutica Gilead Sciences desenvolveu um medicamento injetável de duas doses anuais altamente eficaz tanto no tratamento de casos de HIV multirresistentes como também, e com destaque, para profilaxia pré-exposição (PrEP); isso é, o tratamento prévio para pessoas com maior risco de contaminação caso expostas. Difere-se de uma vacina pois, de maneira simples, essa faz com que seu corpo crie os mecanismos de enfrentamento do patógeno, enquanto o medicamento, chamado de lenacapavir, é um antiviral de uso contínuo (caso o uso seja interrompido, a proteção é desfeita).

Até o momento de publicação desse texto, a patente para produção genérica para ampla produção da medicação não foi liberada para além de 6 outras empresas licenciadas, que podem comercializá-la para cerca de 120 países por preços mais acessíveis; ainda assim deixando países como Brasil, Colômbia, China e Rússia de fora. A farmacêutica pode cobrar até cerca de US$45 mil pelas duas doses por paciente (quase R$280 mil), mas há quem afirme que o valor possa ser reduzido para menos de US$100 (cerca de R$600).

3. Assustador para um dinossauro geólogo…

Talvez a história do meteorito que limpou nosso planeta de monstros gigantes já tenha se tornado anacrônica, mas tente imaginar: se aquele impacto teve tais implicações, o que faria um meteorito de 50 a 200 vezes maior? Bom, nós sabemos. O grupo de pesquisa de Nadja Drabon, da Universidade de Harvard, detalhou o impacto S2, que ocorreu há mais de 3 bilhões de anos, após expedições à África do Sul. O resultado de tal impacto foi uma grande salada de matéria inanimada, mas formadora de vida: deslocamento de águas oceânicas para regiões secas, vapor do oceano numa atmosfera agora bem aquecida – que demorou mas se recuperou da poeira deixada pelo meteorito -, circulação de ferro e outros metais entre diferentes regiões, além de fósforo, muito fósforo, elemento essencial para a retomada no desenvolvimento bacteriano do período.

4. Impactos do aquecimento global

Em um texto recente aqui do Guia (leia), o colaborador Artur Franz Keppler conclui: “Mais do que ouvi-lo [o mar], precisamos urgentemente deter sua deterioração”. O ano de 2024, muito marcado pela quebra de recordes em número de queimadas e quantidade/intensidade de ondas de calor, iniciou com rachaduras no maior iceberg conhecido, 0 A23a, com cerca de 4 mil quilômetros quadrados de extensão – mais da metade da área da Região Metropolitana de São Paulo – e cerca de 400 metros de espessura. Seu degelo apresenta uma ameaça enorme relacionada a alta do nível do mar.

Ainda no tema, o degelo na Groenlândia e em porções do Ártico passa a fortalecer os efeitos do aquecimento global nos países do Hemisfério Sul: o enfraquecimento continuo e intensificado da corrente oceânica Amoc, que leva as águas quentes do Sul para o Norte e as frias do Norte para o Sul, implica numa maior concentração de calor em países como o Brasil, levando ao aumento da temperatura média em até 10°C!

5. Finalmente, um pouco de justiça

Richard Van Noorden abre seu artigo com o parágrafo que segue: “Um estudo que despertou entusiasmo pela ideia, agora refutada, de que um medicamento barato contra a malária pode tratar a COVID-19 foi retraído — mais de quatro anos e meio após sua publicação”. Depois de muitas críticas à qualidade dos dados e à ética na realização da pesquisa, o artigo que popularizou indícios de qualquer eficácia na administração de hidroxicloroquina e azitromicina como tratamento contra a Covid-19 foi derrubado. Esse parágrafo tem um peso enorme, principalmente no Brasil, onde é sabido que muitos dos mais de 600 mil óbitos durante a pandemia poderiam ter sido evitados com uma melhor gestão de saúde pública. Como na luta contra o HIV, é um fato localizado na fronteira entra o laboratório e a sala de estar.

Estamos quase há 5 anos do evento global que foi a pandemia do Covid, momento onde o “debate” científico foi colocado em xeque. Nós, comunicadores da ciência, muitos também produtores e idealizadores dela, fomos confrontados com a dura realidade de nossas fraquezas e vícios. Seguimos aprendendo a falar, mas também a ouvir as demandas de um país muito plural, que enfrenta crises gritantes no silêncio amordaçado de suas desigualdades. Também estamos aprendendo sobre a fraqueza dos charlatões e da mentalidade neoliberal, sobre a hegemonia dos discursos cínicos favoráveis à anticiência e como contorná-los.

A ciência que nós aqui do Guia acreditamos, justa e honesta, interdisciplinar e interpessoal, pode ter papel transformador para mudar essa realidade. Contamos com você, Entusiasta, em mais um ano que se inicia cheio de dúvidas, de estudo, de revisão por pares e café…muito café! Saúde!

Fontes:
observação: os artigos citados a seguir podem ser acessados com contas universitárias (e por outros meios👀); se puder, leia-os!

Imagem destacada: autoria própria

1.:
Mummy of a juvenile sabre-toothed cat Homotherium latidens from the Upper Pleistocene of Siberia (artigo/EN)
Pesquisadores encontram filhote mumificado de tigre-dente-de-sabre de 37 mil anos na Sibéria (notícia/PB)

2.:
‘Vacina’ contra aids: por que Brasil ficou de fora em distribuição do Lenacapavir (notícia/PB)
Gilead Agrees to Allow Generic Version of Groundbreaking H.I.V. Shot in Poor Countries (notícia/EN)

3.:
A Terra já foi atingida por meteoro do tamanho de quatro Montes Everest (reportagem/PB)
Effect of a giant meteorite impact on Paleoarchean surface environments and life (artigo/EN)

4.:
Mudança climática e erosão geram arcos, rachaduras e cavernas no maior iceberg do mundo, revelam novas imagens (notícia/PB)
Degelo na Groenlândia aumenta calor no Sul do planeta e afeta Brasil (reportagem/PB)
Weakening of the Atlantic Meridional Overturning Circulation driven by subarctic freshening since the mid-twentieth century (artigo/EN)

5.:
Estudo que popularizou uso de cloroquina contra Covid-19 é “despublicado” (notícia/PB)
Controversial COVID study that promoted unproven treatment retracted after four-year saga (artigo/EN)

Saiba mais: 

2.:
Por que a Aids predomina entre jovens gays negros e pardos?
Lenacapavir para o tratamento de HIV-1 multirresistente

3.:
vídeo sobre extinções: A sexta extinção em massa

4.:
O mar fala. Será que estamos escutando?

5.:
O que há por trás do lobby de Bolsonaro pelo uso da cloroquina
Como argumentar com anticiência
leituras relacionadas:

  • Chalmers, Alan F. O que é Ciência afinal.
  • Quijano, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina.
  • Caponi, Sandra. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal.
  • Carneiro, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.

 

Compartilhe:

Leave a Reply

Your email address will not be published.Required fields are marked *