O mar fala. Será que estamos escutando? (V.7, N.12, P.3, 2024)

Facebook Instagram YouTube Spotify
Tempo de leitura: 7 minutos
#acessibilidade: A imagem é uma fotografia do projeto Interantar de um Iceberg, que ocupa o centro esquerdo da imagem, num azul bem esbranquiçado, em águas nas ilhas Sub-Antárticas, que contrastam com seu azul profundo, num céu nublado.

Texto escrito pelo colaborador Artur Franz Keppler

Faz muito tempo que a Lygia foi ao mar. Uma gaivota me disse que ela estava só e descalça, na areia molhada, com um caderno e lápis. O que não soube dizer, a ave, foi sobre as condições climáticas do dia em que foi rascunhado seu ambíguo verso.

Fui me confessar ao mar. O que ele disse? Nada.”
Lygia Fagundes Telles

Nada? Nesse caso, “nada” é sinônimo de “coisa nenhuma” ou de “vai nadar”? O verso é ambíguo e por isso lindo. Alguns podem dizer: “só pode ser a primeira opção, o mar não fala”. Aos céticos, garanto que o mar fala e me confessou algo que gostaria de partilhar com vocês. 

Um livro de Isaac Asimov [1], a frase da Lygia, uma reportagem do dia 24.20.24 da coluna de meio ambiente do portal UOL,[2]  foram o ponto de partida para este texto sobre os oceanos. As últimas fontes chamaram minha atenção. O verso pela sua complexidade linguística, já a reportagem, digamos, é uma trágica  consequência da falta de divulgadores científicos na redação de órgãos de imprensa de grande alcance. 

Faço aqui uma rápida análise de: “Oceano enfrenta um colapso que pode afetar clima e economia no Brasil”. Ao usar o eufemismo “pode afetar”, o título da reportagem reforça a tese de que a morte de um ecossistema é algo que pode-se resolver com um ar-condicionado e um plano econômico. E que seria reversível. Não meus caros, não! O colapso do oceano, que está em curso neste exato momento, causará o colapso do clima em todo o planeta, levando à extinção milhares de espécies, não só aquáticas, mas também aquelas que estão em terra firme. A correlação entre clima e economia é um parâmetro incontestável, há séculos. Um camponês medieval já sabia que a chegada do inverno traria fome e privação ao seu povoado, pois o custo do pão mofado, base de sua alimentação, subiria além da sua capacidade de plantio e colheita, ações necessárias para o escambo de mercadorias. 

Finalizando minha rápida análise do texto, fico imaginando qual foi a referência usada para afirmar que “os produtos mais afetados por aqui estão (sic) soja, milho e café — que sofreriam queda na produtividade. Isso afetaria o mercado interno e as exportações”. Meus caros, não apenas as commodities citadas sofrerão; absolutamente todas as lavouras[3] serão severamente afetadas pela falta de chuvas e aumento da temperatura, decorrentes do colapso do funcionamento dos oceanos. E com isso, a nutrição inadequada  e a fome chegarão a muito mais lares.[4]

Agora vamos aos fatos científicos e assim, poderemos falar sobre os reais problemas do tal colapso.

Como um relógio, que tem refinadas engrenagens, os oceanos trabalham em perfeita sincronia com as engrenagens da atmosfera e das calotas polares. Vamos mergulhar… tudo pronto?

Em meados do século XIX, Matthew F. Maury cunhou a expressão “Existe um rio no oceano”.[5]  O tal rio, conhecido como Corrente do Golfo, foi o primeiro a ser descoberto e é muito maior do que qualquer rio terrestre. Ele transporta mil vezes mais água por segundo do que o rio Mississippi. Este rio submarino tem 81 km de largura e 800 m de profundidade no segmento inicial, e se movimenta a 6,5 km/h. Suas águas partem do cálido golfo do Caribe, cruzam o oceano Atlântico e aquecem a costa da ilha de Spitsbergen (Noruega). Obviamente, além de água, são carregados micronutrientes, algas, sedimentos e calor, por exemplo. Além disso, muitos animais aproveitam dessa força natural para cumprir seus ciclos migratórios ou sem sair de casa, recebem via Uber-Nature, suas algas, crustáceos e peixinhos pequenos, vindos de outros continentes. Desde então, foram mapeadas inúmeras correntes que cortam os oceanos. Você, brava leitora, bravo leitor, deve estar se perguntando, qual é a força motriz poderosa que movimenta essa grandes massas de água? 

É a diferença de temperatura, seres curiosos, diferença de temperatura!

Assim como o ar quente sobe, a água fria desce (pois se torna ligeiramente mais densa ao resfriar), nas calotas polares, a superfície dos oceanos é bem gelada, perto do ponto crítico de congelamento. Então essa água superficial afunda. Leva consigo o oxigênio que troca com a atmosfera, permitindo a vida existir nas profundezas dos oceanos, onde o oxigênio não chegaria apenas por difusão. Quando essa massa de água gelada afunda, empurra a água mais quente para cima, levando nutrientes como fosfato e nitrato, consumidos pela rica fauna que vive perto da superfície. Essa água esfria e novamente afunda, criando um ciclo contínuo, dependente das massas de gelo das calotas polares. Esse é o movimento vertical da água oceânica.

Mesmo nos trópicos, as águas profundas são muito geladas. Eventualmente, são empurradas para a superfície, pois não haveria outro lugar para ir (não podem afundar mais!). Ao subir, se esquentam e deslizam para o Ártico ou para a Antártica. Lá se resfriam e afundam novamente. A circulação resultante, os tais rios, chamados de correntes oceânicas (ou movimentação horizontal), misturariam completamente as águas do Atlântico em 1000 anos e a do Pacífico, um oceano muito maior, em 2000 anos.

Como a superfície da calota polar antártica é 10x maior do que a do ártico, a movimentação das lâminas de água oceânicas são muito mais eficientes nas terras dos pinguins. A água gelada que parte da Antártida é a responsável por carregar oxigênio por todo o fundo oceânico, uma vez que todos os gases se dissolvem em maior quantidade em água gelada do que na quente, além de levar consigo plâncton, krill e nutrientes. A Antártida portanto fertiliza e dá vida aos oceanos Fazendo o mapeamento da concentração de oxigênio das águas profundas, descobriu-se que as maiores correntes partem da Antártida em direção ao norte do Atlântico e do Ártico pela Corrente do Golfo, para o sul.

Recentemente, foram publicadas fotos e reportagens sobre o “verdejamento” da Antártida.[6] E isso, como já dá para deduzir, é um problema. Você já acompanha o projeto Interantar, não é? Se não, corre lá [7] para saber mais sobre essa fascinante região e o que anda acontecendo com ela.

Menos áreas geladas, menor diferença de temperatura, menor a movimentação das águas. E as chuvas? Assim como os rios oceânicos correm por conta da diferença de temperatura, com os ventos (deslocamento de ar) também acontece algo similar. O derretimento das calotas polares e o aumento da temperatura dos oceanos, causarão um desbalanço nesse fluxo que empurra a água evaporada do mar em direção ao continente. O regime de chuva então, será severamente afetado, provavelmente porque a água evaporada dos oceanos ficará estagnada e cairá de volta, nos oceanos.

Deve ter ficado claro que os oceanos são tão ou mais importantes para nossa sobrevivência do que as matas e florestas. Mudanças na maquinaria dos oceanos vão colapsar o clima e inviabilizar a habitabilidade do nosso planeta. Lembremos por fim que foi na água que floresceram as primeiras formas de vida e é nela que devemos focar nossos esforços para que a humanidade não se vá.

O que o mar me confessou, em seu complexo dialeto, é que suas águas precisam de muita atenção. Mais do que ouvi-lo, precisamos urgentemente deter sua deterioração.

Fontes e Notas do Autor:

Até os dias atuais, a Terra é o único planeta no sistema solar que possui a temperatura que permite que a água coexista em três estados físicos: sólido, líquido e gasoso. Corpos celestes como Ganimedes e Calisto, as duas das maiores luas de Júpiter, que estão tão afastadas do Sol como a Terra, são essencialmente água sólida. A Europa, outra lua de Júpiter, tem uma grande superfície de gelo e existe a possibilidade de existir água líquida sob essa crosta. Todos os outros corpos celestes estudados e “acessíveis” ao ser humano, apresentam traços insignificantes de vapor de água em sua superfície. Até onde sabemos, a Terra é o único corpo do sistema solar que tem um oceano: água líquida em contato direto com a atmosfera. Apesar de cobrir mais de 71% da superfície da Terra, a água dos oceanos representa 1/4000 da massa total do nosso planeta. Se a Terra fosse uma bola de bilhar, os oceanos seriam a fina camada de tinta da sua superfície.

A maior parte científica do meu texto, foi transcrita e adaptada, via tradução direta do inglês para o portugues, do capítulo “Oceans” do livro “Asimov ‘s New Guide to Science “. Eu fiz apenas a contextualização daquilo que foi escrito, por Isaac Asimov, com nossa situação atual. Não sou oceanógrafo. Sou químico orgânico, apesar do meu sobrenome, também não sou especialista em planetas. Mas sou apaixonado pelo tema. E apaixonado pelo nosso planeta.

[1] A última edição do “Asimov ‘s New Guide to Science”  foi publicada em 1984 e mesmo assim, com 40 anos nas costas, o livro continua sendo uma referência palatável para leitores de todos os níveis de conhecimento científico.

[2] Oceano enfrenta um colapso que pode afetar clima e economia no Brasil; acessado dia 24.10.24

[3] Sofrerão os pequenos produtores, que não têm financiamentos governamentais para a compra de insumos, máquinas e equipamentos de rega automática. É a agricultura familiar que produz a base da alimentação da população brasileira com mandioca, vegetais folhosos, feijão, leguminosas e frutas. Já a soja, milho e outras lavouras plantadas em latifúndio, não alimentam nada além dos bolsos dos grandes produtores.

[4] Segundo a ONU, em 2023, cerca de 2,33 bilhões de indivíduos no mundo enfrentaram insegurança alimentar moderada ou grave. Portanto, atualmente, 28% dos habitantes da Terra passam fome – ONU: Níveis de fome seguem persistentemente altos por três anos consecutivos, enquanto as crises globais se aprofundam acessado 02.12.24

[5] Também foi Matthew Fontaine Maury quem publicou o primeiro livro de oceanografia, descrevendo detalhes do seu estudo sobre a Corrente do Golfo. 

[6] Antártica está ‘ficando verde’ em ritmo acelerado, alertam cientistas; acessado dia 24.10.24

[7] www.interantar.com

Fonte da Imagem Destacada: Clau Lizieri, do projeto Interantar

 

Compartilhe:

Leave a Reply

Your email address will not be published.Required fields are marked *