Navalhas, cavalos, zebras e médicos: onde essas coisas se juntam (V.4, N.6, P.3, 2021)

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Tempo de leitura: 6 minutos
#acessibilidade Pelúcia do meme “chick with knife”, com um pato fofo segurando uma faca.

“O senhor já ouviu falar no prêmio ‘Rusty Razor’, Senador?”

Essa foi a pergunta (irônica) que a médica Luana Araújo fez ao senador Luiz Carlos Heinze em seu depoimento à CPI da Covid no Senado Brasileiro, no dia 2 de junho de 2021.

Se você está acompanhando as notícias sobre o BBB Senado, talvez ache essa notícia velha ou desinteressante. Mas calma caro entusiasta, não feche a aba ainda, pois esse texto é sobre ciência, e um pouco de filosofia. (Não que a política não seja importante, é muito!! Mas vamos por partes…)

respostas - Navalhas, cavalos, zebras e médicos: onde essas coisas se juntam (V.4, N.6, P.3, 2021)

#acessibilidade Tirinha que mostra uma grande fila de pessoas andando por uma rua que passa por uma bifurcação. Na bifurcação há uma placa “Respostas” com uma seta que aponta para um lado escrita “simples mas errado”, caminho pelo qual a grande maioria das pessoas vai, e uma seta para o outro lado escrita “complexo mas errado” que tem uma estante de livros e apenas uma pessoa indo pelo caminho, com um livro na mão.

O tal prêmio, cuja tradução do nome é “navalha enferrujada”, é uma sátira criada pela revista britânica “The Skeptic”, e é oferecido à pessoa (ou organização) que foi o pior exemplo de pseudociência e desinformação do ano anterior.

É difícil definir o que é pseudociência, pois muitas coisas se encaixam nessa descrição. São supostos “campos do conhecimento” que se apropriam de termos e metodologias científicas, tirando-os do contexto no qual eles são válidos, e aplicam em campos nos quais eles não fazem o menor sentido.

Um exemplo de pseudociência é a astrologia, que desde a antiguidade utiliza os resultados de observações feitas na astronomia (que é uma ciência!) e aplica para definir a personalidade de uma pessoa, ou adivinhar seu futuro, baseado nas posições dos astros quando essa pessoa nasceu.

Outro exemplo são as chamadas “terapias quânticas”, que utilizam de termos definidos pela Física Quântica (que é um ramo da Física que descreve os fenômenos que ocorrem em escala atômica, e você pode ler mais sobre isso aqui em contextos aleatórios como saúde, espiritualidade etc.

“Tá, mas e a navalha, o que tem a ver com a história?”

A navalha vem da expressão “navalha de Occam” (ou Ockham), que é um princípio filosófico que diz que se você tem várias explicações sobre um problema, a explicação mais simples é a mais provável. Mais formalmente: “Se temos várias hipóteses igualmente boas para explicar um evento, devemos escolher aquela que possui o menor número de premissas”*. A navalha em si faz referência ao “cortar o que é excedente”. O termo começou a ser utilizado no final do século XVII, e faz referência ao filósofo medieval inglês Guilherme de Ockham, que propôs esse princípio denominado por ele de “lei da parcimônia”.

A medicina em particular utiliza muito deste conceito, ao dizer “se você ouve cascos, pense em cavalos e não em zebras”. Ou seja, se você tem um conjunto de sintomas, pense primeiro nas causas mais comuns e mais simples, e só depois de descartá-las vá para as mais raras e complexas.

Um exemplo que ilustra a utilidade da navalha de Occam, no qual a simplificação do modelo traz a melhor resposta, é o estudo da transição do modelo geocêntrico para o modelo heliocêntrico do “cosmo”. No modelo geocêntrico, a Lua, o Sol e os planetas giram em torno da Terra, que permanece fixa no centro. Proposto por Ptolomeu e outros filósofos na antiguidade, este modelo cosmológico foi o mais aceito até o final da Idade Média.

Esse modelo era baseado em observações do movimento aparente dos astros no céu. No entanto, algumas observações não se encaixavam nele, pois alguns astros apresentavam um movimento retrógrado (em sentido contrário ao usual) por alguns períodos. Dessa forma foram adicionadas pequenas órbitas circulares em torno de um ponto fixo das órbitas dos planetas ao redor da Terra, chamadas epiciclos, e esse modelo foi ficando cada vez mais complexo. (Só de tentar entender essa descrição já ficou complexo né? Esse link tem animações dos movimentos aparentes dos planetas nos dois modelos e você também pode ver o GIF abaixo)

heliocentrismo - Navalhas, cavalos, zebras e médicos: onde essas coisas se juntam (V.4, N.6, P.3, 2021)

#acessibilidade Imagem animada que mostra o movimento do Sol e dos planetas do Sistema Solar no heliocentrismo, com os planetas formando círculos ao redor do Sol, e no geocentrismo, com a Terra parada no centro, o Sol fazendo um círculo ao redor dela e os outros planetas em movimentos circulares acelerando e desacelerando, parando e voltando para trás.

Foi quando Copérnico (1473-1543) propôs um modelo que colocava o Sol no centro e os outros planetas (incluindo a Terra) em órbitas ao seu redor. O chamado modelo heliocêntrico não precisava desses epiciclos adicionais, e explicava o movimento retrógrado como o movimento aparente entre os três pontos: Sol, Terra e o planeta observado. O modelo heliocêntrico de Copérnico foi aprimorado posteriormente por Johannes Kepler (com a ajuda dos dados do astrônomo Tycho Brahe), por Galileu Galilei, e por Isaac Newton.

É importante destacar que a navalha de Occam não é uma lei física ou uma lei da natureza, que nos diz que a solução mais simples é sempre a correta. É um princípio filosófico/metodológico, que pode ser utilizado como ferramenta que permite evitar complexidades desnecessárias. No entanto, nem tudo é simples de ser explicado na natureza, e para muitos casos a resposta simples está errada. A já citada teoria quântica, por exemplo, está longe de ser simples ou de poder ser simplificada, e olha que muitos tentaram!

E se você chegou até aqui, só para finalizar: a médica Luana Araújo se referia ao prêmio “rusty razor” dado ao microbiologista DJ Raul Didier Raoult em 2020, como pior propagador de pseudociência e desinformação do ano pela sua defesa à utilização da hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19, e que o senador citou como referência para a utilização deste medicamento.

E se você quiser saber mais sobre os estudos que envolvem a utilização da cloroquina e hidroxocloroquina e do trabalho do Didier Raoul, recomendo este texto dos divulgadores científicos Felipe Hime e Gustavo B. C., disponível no site da Revista Questão de Ciência.

A revista, que é uma publicação digital do Instituto Questão de Ciência (IQC), dirigido pela microbiologista Natália Pasternak, traz vários conteúdos bem embasados sobre Covid-19 especificamente, e sobre divulgação de ciência em geral.

*a citação foi tirada do vídeo História: A Navalha de Ockham do canal Escola Íntegro no YouTube

sentido - Navalhas, cavalos, zebras e médicos: onde essas coisas se juntam (V.4, N.6, P.3, 2021)

#acessibilidade Meme com oito quadrinhos e o título “O que faz mais sentido?”. Nos quadrinhos do lado esquerdo há desenhos de várias pessoas com o texto “grupos ambientais regionais e ativistas comunitários”, um saco de dinheiro com o texto “estão gastando sua verba operacional limitada”, desenhos de vários cientistas com o texto “em uma conspiração global com 90% dos cientistas” e uma máscata rindo de um gráfico com uma seta para baixo e o texto “para criar um boato mundial e acabar com a economia global”. Nos quadrinhos do lado direito há uma bomba em poço de petróleo com o texto “grandes companhias de petróleo”, uma grande quantidade de sacos de dinheiro empilhados com o texto “estão gastando seus lucros obscenos”, desenhos de dois cientistas com o texto “para subornar qualquer um que eles possam” e um desenho de uma balança pendendo para um lado com muito dinheiro nele e um martelo de juiz do outro lado.

Fontes:

Fonte da imagem destacada: Know Your Meme

Fonte da imagem 1: Blog O Nutricionista Clandestino

Fonte da imagem 2: Internet

Fonte da imagem 3: Internet (adaptado)

Para saber mais:

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-navalha-de-occam/

https://www.infoescola.com/filosofia/navalha-de-occam/

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/navalha-de-occam-entenda-origem-do-principio-filosofico-que-prega-a-simplicidade.phtml

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