#acessibilidade Foto de uma sala de aula com todas as carteiras vazias.
Texto escrito em colaboração com Leticia Oyakawa
Quais medidas ajudam a diminuir o número de novos casos de COVID-19? E quais aumentam?
Essas foram as perguntas que um artigo publicado em outubro de 2020 na Revista The Lancet: Infectious Diseases (1) tentou responder. Analisando uma série de medidas tomadas por 131 países os autores tentaram entender como a adoção de cada uma delas contribuiu para a diminuição da taxa de transmissão em relação ao tempo (Rt) e como o relaxamento dessas medidas contribuiu para seu aumento.
A taxa de transmissão, comumente representada pela letra R maiúscula, indica para quantas pessoas em média cada infectado transmitirá o vírus. Se em determinado momento o R for 2, quer dizer que cada pessoa infectada transmite, em média, para outras duas. Se o R estimado estiver abaixo de 1, quer dizer que a situação está controlada e o número de casos diários tende a cair. Vários fatores podem influenciar o R; este estudo analisou a influência da adoção e do relaxamento de cada uma destas oito intervenções não-farmacológicas (NPI): fechamento de escolas, fechamento dos locais de trabalho (considerando também dados do Google mobility), proibição de eventos públicos, restrições no tamanho de aglomerações, fechamento de transportes públicos, instruções para permanecer em casa, restrições na mobilidade interna e restrições em viagens internacionais. Instruções para permanecer em casa e restrições na mobilidade interna foram as medidas mais aplicadas pelos países analisados e o fechamento de escolas e a proibição de eventos públicos foram as primeiras e mais duradouras. Mas quais medidas mais ajudaram a diminuir a taxa de transmissão?
Para realizar esta análise foram utilizados dados de estimativas da taxa de transmissão (R) diárias por país feitas pela London School of Hygiene & Tropical Medicine (London, UK) e dados de políticas de NPIs por país disponíveis no Oxford COVID-19 Government Response Tracker, ambos para o período entre 01/01/2020 e 20/07/2020.
Uma fase foi definida como “o período em que um país manteve as oito NPIs no mesmo estado”, sendo que para a construção da base de dados cada NPI foi considerada como variável binária assumindo 1 quando ativa e 0 quando não ativa. Como um exemplo, imagine que em determinado momento um país esteja limitando viagens internacionais e tenha determinado o fechamento de escolas; esta seria uma fase. Se este país começar a limitar a mobilidade interna, estará mudando de fase. Como são oito NPIs analisadas (oito variáveis), são 64 fases diferentes possíveis em cada um dos 131 países. Linhas do tempo foram construídas para cada país com divisões por fase que cada país passou. A variação do R em cada fase foi medida entre o último dia da fase anterior, antes das NPIs mudarem, com esse número servindo de referência como 1, e todos os dias até 28 dias após a mudança (adoção/relaxamento), com valores acima de 1 indicando um aumento na taxa de transmissão e valores abaixo de 1 indicando uma diminuição, assim sendo possível relacionar a adoção/relaxamento de cada NPI com a taxa de transmissão do SARS-CoV-2.
No total, 790 fases de 131 países foram incluídas na análise. A adoção e o relaxamento de cada NPI foi considerada individualmente e os resultados mostraram uma tendência de diminuição no fator R após o fechamento de escolas, fechamento de locais de trabalho, proibição de eventos públicos, instruções para permanecer em casa e mobilidade interna limitada; a redução variou de 3% a 24% após 28 dias desde a introdução das medidas em comparação ao dia antes da adoção das mesmas. Uma tendência de aumento foi observada após a reabertura de escolas, o relaxamento na proibição de eventos públicos, relaxamento das proibições de aglomerações com mais de dez pessoas, relaxamento nas instruções para permanecer em casa e de restrições de mobilidade interna; o aumento variou de 11% a 25% após 28 dias do relaxamento das medidas em relação ao dia antes do relaxamento. Estes efeitos não são imediatos, podem ser percebidos apenas após um período mediano de 8±2 dias para observar uma diminuição significativa após a adoção das NPIs e 17±3 dias para observar um aumento significativo após o relaxamento.
A imagem abaixo mostra a influência (%) da adoção (em azul) e relaxamento (em vermelho) de cada NPI na taxa de transmissão em um período de 28 dias. As que apresentaram maior efeito na diminuição do R foram a proibição de eventos públicos e o fechamento de escolas, já as que apresentaram maior efeito no aumento do R foram justamente o relaxamento destas duas medidas. Imagem adaptada do artigo. Todo o código e as bases de dados utilizadas nas análises foram disponibilizados em um repositório no Github.
Quatro combinações com múltiplas medidas foram analisadas e o lockdown foi a com melhor desempenho, consistindo na combinação de fechamento de escolas e locais de trabalho, proibição de eventos públicos e de aglomerações com mais de 10 pessoas, limitação da mobilidade interna e instruções para permanecer em casa, com uma redução de 52% no R após 28 dias.
O efeito da adoção de uma ou mais NPIs na diminuição do R já havia sido observado em estudos asiáticos e europeus, mas pouco se sabia sobre a influência do relaxamento das mesmas no aumento do R, sendo este o primeiro estudo a apontar sua influência.
Ainda assim, o estudo possui limitações, como ter considerado a adoção dos países às NPIs e não a adoção da população, de forma que mesmo que uma medida tenha se tornado obrigatória em determinado período, não foram incluídos dados sobre o comportamento da população, respeitando ou não as medidas. Outros fatores não considerados foram a estação do ano e as condições meteorológicas como temperatura e humidade, no entanto há um segundo artigo (2) apontando que a humidade é muito fracamente associada a um aumento e que não há associação conhecida entre a latitude e a temperatura com a taxa de transmissão.
Este estudo também não foi capaz de avaliar medidas de higiene pessoal e adoção ao uso de máscaras, mas um terceiro artigo (3) mostrou que o uso de máscaras não apenas diminui a transmissão como também diminui a carga viral a qual as pessoas infectadas são expostas, abrandando os sintomas ou até mesmo deixando-as assintomáticas. Tal estudo apontou que houve um crescente aumento, ao longo do tempo, na proporção das taxas de infecções assintomáticas e casos leves de COVID-19 em relação aos casos graves em locais que adotaram o mascaramento a nível populacional. Ambientes fechados como os navios cruzeiros particularmente ilustram esta relação. A taxa de infecção assintomática apresentou-se na faixa de 20% em um relatório do surto de COVID-19 no navio cruzeiro Diamond Princess, contudo, em um relatório mais recente de um surto em um outro navio cruzeiro, onde todos os passageiros utilizaram máscaras após o caso inicial ter sido detectado (ambiente fechado com mascaramento), a maioria dos pacientes infectados no navio, 81%, permaneceram assintomáticos.
Muitos países adotaram uma ou mais NPIs em um primeiro momento e, quando viram seus números caírem e se manterem estáveis por um tempo, fizeram o relaxamento das medidas. As descobertas deste estudo fornecem evidências que podem auxiliar as pessoas responsáveis pelas políticas de combate à pandemia a tomarem melhores decisões na hora de adotar ou relaxar NPIs, ainda que a taxa de transmissão (R) não deva ser a única coisa levada em consideração.
Fontes:
Fonte da imagem destacada: Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay
(1) Li, Y, et al. The temporal association of introducing and lifting non-pharmaceutical interventions with the time-varying reproduction number (R) of SARS-CoV-2: a modelling study across 131 countries. Lancet Infect Dis. 2020. [acesso em 1 de nov de 2020]. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30785-4/fulltext.
(2) Jüni, P, et al. Impact of climate and public health interventions on the COVID-19 pandemic: a prospective cohort study. Cmaj. 2020;192(21): 566-573.
(3) Gandhi, M, Beyrer, C, Goosby, E. Masks do more than protect others during COVID-19: reducing the inoculum of SARS-CoV-2 to protect the wearer. J Gen Intern Med. 2020;35:3063-3066.