#acessibilidade Modelo esquemático de duas camadas de grafeno, uma formada por esferas azuis e outra por esferas cinzas, cada uma formando uma rede hexagonal. As duas redes são sobrepostas e existe uma pequena rotação entre elas. Devido a rotação, é gerado um padrão de interferência entre as redes conhecido como padrão moiré.
Anteriormente, em outro texto aqui no blog, foi contado um pouco da “descoberta” do grafeno em 2004, descoberta esta que resultou no prêmio Nobel de Física, em 2010, aos principais pesquisadores envolvidos. Logo após a descoberta, os cientistas começaram a imaginar todas as possíveis aplicações que este fantástico material poderia ter e a revolução que poderia trazer em diversas áreas tecnológicas, tais como: indústria eletrônica, geração de energia, baterias, sensores e muito mais. Após mais de uma década sendo exaustivamente estudado, o interesse dos pesquisadores da área de ciências dos materiais pelo grafeno esfriou. A proposta revolução tecnológica não veio e algumas poucas aplicações práticas deste material saíram do papel. Mas está enganado quem achou que os anos de glória do nosso ilustre protagonista tinham acabado! E isso começou a mudar em 2018.
Voltando um pouco no tempo, em 2011, dois pesquisadores da Universidade do Texas em Austin (EUA), Rafi Bistritzer e Allan MacDonald, publicaram um artigo, baseado em cálculos teóricos, que mostrava que ao empilhar duas camadas de grafeno, com uma das camadas atômicas levemente rotacionada em relação à outra, novas e fascinantes propriedades eletrônicas poderiam surgir, só não se sabia ao certo quais.
Vamos lembrar o que é o grafeno. Este material consiste de uma única camada de átomos de carbono, com os átomos formando uma rede de hexagonos, sendo uma das suas principais características a excelente capacidade de conduzir eletricidade. Agora, imagine que você é um elétron que “mora” em um grafeno e pode passear pelo material, ou seja, você conduz eletricidade. Além disso, neste novo mundo, existe outro andar acima de você também formado por uma camada de grafeno, com os seus respectivos elétrons passeando pela camada de cima. Infelizmente, a barreira de energia necessária para você visitar os seus amigos elétrons no andar de cima, e vice-versa, é muito alta e cada grupo de elétrons permanece confinado à sua própria camada. O que os cálculos teóricos de Bistritzer e MacDonald mostraram é que, se as camadas de grafeno forem rotacionadas, uma em relação à outra em ângulos bem específicos, a barreira de energia que impede um elétron de visitar os seus amigos no outro andar será extremamente reduzida. Agora existe um “elevador” para você ir visitar seus amigos e os elétrons passam a interagir uns com os outros. No jargão da física de matéria condensada dizemos que os elétrons estão “fortemente correlacionados”. Os ângulos específicos em que isso ocorre são chamados de “ângulos mágicos”, com atenção especial ao ângulo de 1.1°.
Isso não significa que, lá em 2011, outros cientistas não estavam empilhando experimentalmente duas camadas de grafeno, rotacionando-as e observando como as propriedades eletrônicas da bicamada eram afetadas pela rotação (twist), mas poucos deram atenção aos ângulos mágicos calculados por Bistritzer e MacDonald. Um dos principais pesquisadores trabalhando com bicamadas de grafeno rotacionadas, Philip Kim, da Universidade de Harvard (já falamos dele no outro texto aqui do blog), disse que achou a teoria desenvolvida por Bistritzer e MacDonald muito “simples” e que, do ponto de vista experimental, seria muito difícil posicionar as duas camadas em exatamente 1.1°. O pesquisador alegou que haveria uma tendência natural das camadas de grafeno se realinharem. Nem todos os cientistas, porém, pensaram como Kim e um deles, Pablo Jarillo-Herrero, professor do Instituto de Tecnologia de Massachussets – MIT (EUA), continuou perseguindo os ângulos mágicos até que em 2018 veio a comprovação. Em seu laboratório no MIT, Jarillo-Herrero e seus estudantes construíram um dispositivo formado por duas camadas de grafeno, com uma das camadas rotacionada precisamente de 1.1° em relação à outra, e então utilizaram este dispositivo para estudar as propriedades de condução elétrica através da bicamada na presença de um campo elétrico externo aplicado. Para a surpresa deles, quando o dispositivo foi resfriado em temperaturas abaixo de 1.7 K, a resistência à passagem de corrente elétrica através do dispositivo se tornou nula, ou seja, o material se tornou um supercondutor! Os resultados foram publicados em dois artigos na revista Nature e apresentados pela primeira vez, em 2018, na importante conferência APS March Meeting, nos Estados Unidos (um vídeo da apresentação pode ser assistido no YouTube). Pela descoberta, Jarillo-Herrero já ganhou vários prêmios, inclusive o prêmio Wolf de Física em 2020 (em física e química, o prêmio Wolf é considerado o mais prestigioso prêmio depois do Nobel), junto a Rafi Bistritzer e Allan MacDonald.
Após a descoberta, vários outros grupos de cientistas pelo mundo começaram a trabalhar neste tópico de pesquisa, replicando e confirmando os resultados do grupo do MIT. É um campo de pesquisa que está em plena “explosão”, com um entusiasmo que não se via desde a descoberta do grafeno em 2004. Agora, os cientistas estão começando a empilhar mais que duas camadas de grafeno e combinando com outros materiais bidimensionais, como o nitreto de boro hexagonal e dicalcogenetos de metais de transição. O estudo de como o ângulo entre materiais bidimensionais pode afetar suas propriedades eletrônicas está sendo chamado de twistronics (da combinação de twist e electronics).
Quando falamos em supercondutividade, imaginamos a possibilidade de transmitir eletricidade por longas distâncias sem perdas, de usufruir de trens de alta velocidade que levitam magneticamente, de importantes aplicações em áreas médicas e muito mais. Entretanto, os cientistas estão cautelosos para não cometer o mesmo erro cometido em 2004, quando o grafeno surgiu como uma revolução na indústria eletrônica. Até porque a supercondutividade nos dispositivos MAG (magic angle twisted bilayer graphene) ocorrem em temperaturas baixíssimas, um pouco acima do zero absoluto! Então, de onde vem todo o entusiasmo? A resposta é que os dispositivos com as bicamadas de grafeno rotacionadas não apresentam apenas a propriedade de supercondutividade em baixas temperaturas, mas podem ter diferentes propriedades eletrônicas. Devemos lembrar que um material pode ser um bom condutor de eletricidade, como um fio de cobre, um isolante elétrico, como uma placa de vidro ou até mesmo ter um comportamento intermediário entre essas duas situações (semicondutor). Nos dispositivos MAG, estas distintas propriedades eletrônicas, incluindo a supercondutividade, podem ser selecionadas simplesmente mexendo em um botão! Obter esta variedade de diferentes propriedades eletrônicas nos materiais convencionais exige, normalmente, que se altere a sua composição química e é aí que entra o entusiasmo dos cientistas. Os pesquisadores acreditam que a plataforma criada com a twistrônica pode ser importante para entender como funciona a supercondutividade em outros materiais, especialmente os que exibem essa propriedade em temperaturas mais altas, como no caso de alguns materiais cerâmicos.
O campo da twistrônica só está começando e o interesse por parte dos cientistas de materiais não falta. No futuro, este tipo de estudo pode levar ao desenvolvimento de materiais supercondutores em temperaturas próximas à temperatura ambiente. O que os próximos resultados nos dirão, ainda não podemos saber, mas se o ritmo atual de evolução nesta área continuar, não é exagero imaginar que um novo prêmio Nobel está a caminho. O grafeno, triunfante, volta aos seus dias de glória!
Fontes:
Fonte da imagem destacada: National Institute of Standards and Technology / Public domain
R. Bistritzer e A. H. MacDonald, Moire bands in twisted double-layer graphene, Proc. Natl. Acad. Sci. USA 108, 12233 (2011). https://doi.org/10.1073/pnas.1108174108
https://physicsworld.com/a/twistronics-tunes-2d-material-properties/
https://www.quantamagazine.org/how-twisted-graphene-became-the-big-thing-in-physics-20190430/
Y. Cao et al., Unconventional superconductivity in magic-angle graphene superlattices, Nature 556, 43 (2018). https://doi.org/10.1038/nature26160
Y. Cao et al., Correlated insulator behaviour at half-filling in magic-angle graphene superlattices, Nature 556, 80 (2018). https://doi.org/10.1038/nature26154
Vídeo Magic-Angle Graphene Superlattices: Pablo Jarillo-Herrero do canal APS Physics no YouTube
X. Lu et al., Superconductors, orbital magnets and correlated states in magic-angle bilayer graphene, Nature 574, 653 (2019). https://doi.org/10.1038/s41586-019-1695-0
E. Gibney, How ‘magic angle’ graphene is stirring up physic, Nature 565, 15 (2019). https://www.nature.com/articles/d41586-018-07848-2
https://physicsworld.com/a/magic-angle-graphene-reveals-a-host-of-new-states/