#acessibilidade: Relógio analógico com numeração romana, fundo branco, números pretos e ponteiros da cor prata, emoldurado sob um arco tipo gótico, numa das torres da basílica Nossa senhora do Vale, ilha margarita, Venezuela.
Texto escrito por Fulvio Andres Callegari
Nos tempos mais antigos, na origem da civilização, a medida da passagem do tempo começou a ser feita baseando-se nos ciclos do sol, da lua e das estrelas. Com isto, construía-se um calendário básico, muito útil para planejar viagens, tempos de semeadura, colheita, festivais pagãos e religiosos, etc. Uma maior precisão na medida chegaria depois com o relógio solar e posteriormente com relógios mecânicos. Com o avanço das ciências físicas, surgiu a pergunta: o que exatamente estamos medindo quando medimos o tempo? E ainda, o tempo realmente existe ou é uma ilusão?
Podemos ler a definição de tempo que deu Isaac Newton no seu Principia Mathematica, texto fundacional da ciência física moderna: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa e é também chamado de duração; o tempo relativo, aparente e comum é alguma medida de duração perceptível e externa (seja ela exata ou não uniforme) que é obtida através do movimento e que é normalmente usada no lugar do tempo verdadeiro, tal como uma hora, um dia, um mês, um ano.” Vemos que, inicialmente, Newton define um tempo absoluto abstrato, válido para todos os cantos do universo, e logo a seguir introduz uma definição operacional, relacionada com os já conhecidos ciclos da natureza.
Posteriormente, Einstein introduziu a noção de tempo relativo ao estado de movimento, predizendo corretamente que o tempo medido pelos nossos relógios não flui ao mesmo ritmo quando medido em dois relógios em movimento relativo um a respeito do outro. Também, a medida difere quando os relógios estão submetidos a diferentes campos de gravidade. O tempo, a partir da teoria da relatividade está inextricavelmente ligado ao espaço através de uma nova entidade matemática, o espaço-tempo, que é o sistema de coordenadas utilizado nessa teoria. Desta forma, junto com as três coordenadas espaciais usuais, é considerada uma quarta: o tempo. E aqui vem o mistério relacionado ao tempo; em quanto somos livres de movermos pra frente e para atrás em qualquer uma das coordenadas espaciais, no tempo parecemos estar sempre avançando inexoravelmente (inclusive quando “parados” num ponto do espaço tridimensional). Porque isto acontece? Porque o passado fica para trás e já não podemos retornar nessa coordenada?
Podemos procurar a resposta num outro âmbito da física, a termodinâmica. Pensemos numa gota de tinta preta colocada num copo cheio d’água límpida e transparente. Lentamente, a tinta concentrada começará a difundir-se através da água até a mistura toda ficar de uma cor uniforme. Este processo de difusão deu-se de forma espontânea. Porque é que nunca se observa espontaneamente a tinta difundida se concentrar novamente numa gota?
Outro exemplo: imaginemos uma bicicleta de ponta cabeça, agora giramos uma das rodas, lentamente a rotação da roda vai diminuindo até finalmente parar. A energia que entregamos à roda inicialmente através do impulso de nossa mão é energia cinética de rotação. Esta energia paulatinamente é comunicada em forma de calor, via o atrito entre os rolamentos e as partes fixas da bicicleta, e também pelo atrito com o ar, provocando um aumento (muito pequeno), da temperatura no entorno da roda. Finalmente, quando toda a energia de rotação se transforma em calor, a roda para o seu movimento. Este processo está de acordo com o princípio de conservação da energia. Mas também está de acordo com este princípio o processo inverso, isto é, que espontaneamente os arredores da roda esfriem, e que a energia resultante de este “esfriamento” seja comunicada à roda e assim começar a girar. De novo, o princípio de conservação da energia não proíbe este processo, mas sabemos que mesmo assim ele não acontece.
Esse é o escopo da segunda lei da termodinâmica (a primeira lei da termodinâmica é justamente a lei de conservação da energia nos sistemas onde a troca de energia inclui o calor). A segunda lei indica uma direção na qual os processos físicos dos sistemas complexos acontecem espontaneamente. Essa direção se quantifica através de uma propriedade chamada entropia, a qual se define em termos qualitativos como a desordem de um determinado sistema. A segunda lei nos disse que esta quantidade só aumenta, nunca diminui. Isto é, os sistemas complexos só ganham desordem quando evoluem (experimentam alguma mudança) espontaneamente. A gota concentrada é um sistema mais ordenado que a gota difundida no copo d’água. A roda girando uniformemente é um sistema mais ordenado que o movimento caótico das pequenas partículas em volta (o calor). A natureza desses processos é irreversível. Vivemos num universo onde se observa que os sistemas passam da ordem à desordem. É justamente esta propriedade do universo a qual pareceria definir uma seta preferencial do tempo.
Pensemos no nosso próprio processo de envelhecimento, ou o dos animais. Pensemos em qual estado do nosso corpo (um complexo sistema biológico) é o mais ordenado, o da nossa juventude ou o estado da nossa velhice? Certamente começamos aqui a perceber que não, o tempo realmente não é apenas uma ilusão. Como o assinalou o físico-químico Ilya Prigogine (prêmio Nobel de Química 1977); todas as reações químicas são irreversíveis; todos os fenômenos biológicos são irreversíveis. É nesta linha que devemos começar as nossas reflexões e estudos sobre como percebemos e somos afetados pela passagem do tempo, tema que obviamente não se esgota nestes raciocínios, e que ainda ocuparão gerações de cientistas por vir.
Fontes:
Fontes das imagens destacadas: Relógio (commons.wikimedia)
Isaac Newton, I. Principia: princípios matemáticos de filosofia natural – Vol.I (Trad. Trieste Ricci et al.), São Paulo: Nova Stella / EDUSP, 1990, pp. 6-7.
SANTOS, Marco Aurélio da Silva. “Teoria da relatividade”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/fisica/teorias-da-relatividade.htm. Acesso em 19 de abril de 2022
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Ilya Prigogine. O nascimento do tempo -. Edições 70. 1ªED. (2008).
Para saber mais:
Ilya Prigogine: uma contribuição à filosofia da ciência (texto)
Outros divulgadores:
UM BREVE PANORAMA DO TEMPO NA FÍSICA (texto)
Dizer que o tempo é uma ilusão não se refere à sua inexistência. Ilusão está relacionada a forma como o percebemos ou com fazemos abstrações matemáticas sobre ele,.
Estou gostando muito do site! Parabéns aos autores ♡