#acessibilidade: a imagem em destaque está dividida em três partes. A da esquerda, tem um cristal de kriptonita em verde, com fundo preto. A do meio, tem uma imagem do personagem Wolverine em pé vista de frente, com fundo com brilhos foscos. A da direita, é a imagem representativa da partícula viral de um coronavírus, onde a partícula em si é arredondada e está em cinza e as espículas ao redor da partícula estão em vermelho.
Você pode estar se perguntando o que a kriptonita, o adamantium e o coronavírus têm em comum. E como diria um ex-apresentador de um programa dominical noturno da televisão brasileira: NADA! Mas… será mesmo? Antes de falarmos um pouco sobre a ciência envolvida por trás do estudo das estruturas desses “materiais”, vamos entender um pouco sobre eles.
Quem nunca se fascinou com as histórias do “Homem de Aço”, mais conhecido como “Superman”, tanto nos quadrinhos quanto nas telas do cinema. Os superpoderes do Superman eram afetados quando um cristal de kriptonita, de cor verde, era aproximado dele. A ficção nos fala que esse cristal é oriundo de Krypton, planeta natal do Superman, e que tinha uma ação nociva aos kryptonianos.
O adamantium, por outro lado, é um material mítico, que é mais duro do que qualquer outro material existente e que aparece em citações nas obras “Eneida”, de Virgílio (1667) e a “Divina Comédia”, de Dante (1321), mas que ficou mais conhecido como sendo o material que reveste o esqueleto do Wolverine, personagem dos quadrinhos e filmes dos “X-Men” e que constitui o corpo do vilão Ultron. Além disso, na série “O Senhor dos Anéis – Anéis de Poder”, um dos anéis, chamado de Nenya, era feito de mithril e adornado com uma pedra de adamant, que também constitui uma parte da Torre Negra. Esse cristal tende a ser invisível ao olho humano.
O coronavírus, por outro lado, faz parte de nossa vida recente (infelizmente). Esse nome provém da forma de “coroa” do vírus, que ataca, principalmente, as vias respiratórias dos seres humanos. Sete tipos são conhecidos até o momento: HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63, HCoV-HKU1, SARS-COV (que causa síndrome respiratória aguda grave), MERS-COV (que causa síndrome respiratória do Oriente Médio) e o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Esse novo coronavírus é responsável por causar a doença COVID-19.
Mas, de volta à nossa pergunta, como estudar esses materiais? A “cristalografia” é a ciência que estuda os cristais. A palavra “cristal” vem dos antigos gregos (Heródoto, séc. V a.C.) κρύσταλλος (crustallos, ou foneticamente kroos’-tal-los = frio + gota), que usavam a palavra cristal para se referir ao mineral de quartzo, significando tanto “gelo” como “cristal de rocha”, isto é, frio e duro. Embora possa não ser tão divulgada, estima-se que a pesquisa de 45 vencedores do prêmio Nobel nas últimas décadas, nas áreas de Fisiologia, Biologia, Química e Física, tenha relação com a cristalografia! Não podemos, entretanto, nos referir à cristalografia sem falar da técnica de difração de raios X. Os raios X, descobertos em 8 de novembro de 1895 pelo físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen, lhe renderam o primeiro Prêmio Nobel em Física, em 1901. Röntgen atribuiu o nome de “raios X” à sua natureza até então desconhecida. Assim como a luz visível, micro-ondas, ondas de rádio, ultravioleta, por exemplo, os raios X são um tipo de radiação eletromagnética, com comprimento de onda da ordem de 0,1nm (um décimo de bilionésimo de metro). Essa característica permite que essas ondas sejam espalhadas por objetos que estejam separados uns dos outros por distâncias da mesma ordem de grandeza. E quais seriam esses “objetos”, com separações tão diminutas? Os átomos, íons ou moléculas que compõem todos os materiais que conhecemos na natureza possuem essa característica. Assim, o estudo da chamada “estrutura cristalina”, que é a forma como os cristais se parecem no nível atômico, é realizado com técnicas de difração de raios X. Então vamos ver como podemos estudar nossos materiais de interesse.
Embora a kriptonita seja um cristal fictício, em “Superman Returns”, de 2006, o composto químico hidróxido de sódio boro silicato com flúor foi inventado para ela. Porém, em novembro de 2006, um cristal, de cor branca, com fórmula química muito parecida (LiNaSiB3O7(OH)) foi descoberto em uma mina, na Sérvia, e chamado de “jadarita” (hidróxido de sódio boro silicato com lítio). Sua estrutura cristalina foi determinada com o uso da técnica de difração de raios X de cristal único ou, como mais comumente chamada, difração de raios X de monocristais.
#acessibilidade: caixa vermelha aberta, dentro da qual contém uma placa preta com escritas em branco. Nesta placa há um pedaço circular do cristal jadarita, o qual é branco acinzentado.
As referências reais feitas com o adamantium podem ser associadas ao diamante, que é um mineral composto somente por átomos de carbono. Os átomos de carbono estão ligados por fortes ligações covalentes, o que significa que é muito difícil separá-los, em qualquer direção. Como os cientistas gostam de dizer, em condições normais de temperatura e pressão (CNTP), entretanto, o diamante não é realmente estável. Os átomos de carbono preferem estar em uma estrutura diferente, conhecida como grafite. O grafite é feito de camadas de átomos de carbono unidos por ligações covalentes fortes, como o diamante, porém as forças que mantêm as camadas juntas são muito fracas, o que o torna um material bastante “macio”. O diamante e o grafite são formas alotrópicas do carbono (ou seja, os dois são compostos pelo mesmo elemento, mas se apresentam com formas e propriedades física diferentes, neste caso de diamante e grafite, beeeeeem diferentes! Veja mais informações neste nosso outro post).
#acessibilidade: a imagem está dividida em quatro quadrantes. Quadrante esquerdo superior contém um pedaço de grafite da cor prata, com fundo azul. Quadrante direito superior, há uma pinça segurando um pedaço de diamante em formato de gota. Quadrante esquerdo inferior, há o modelo atômico do grafite, com átomos organizados em hexágonos. Quadrante direito inferior, há a estrutura tridimensional do diamante.
Ok, estávamos falando de cristais e cristalografia. Mas como o coronavírus entra nessa história? Com a pandemia da COVID-19, decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, a comunidade científica internacional iniciou uma corrida na busca por vacinas e medicamentos que pudessem ser utilizados na imunização ou no tratamento de pessoas acometidas com a doença. Ainda em 2020, um grupo de cientistas chineses conseguiu cristalizar a protease principal (MPRO) do SARS-CoV-2, que é uma enzima chave dos coronavírus e tem um papel fundamental na mediação da replicação e transcrição viral, tornando-a um alvo atraente para o vírus. Eles utilizaram uma técnica conhecida como “cristalografia de macromoléculas”, utilizando a linha de luz BL17U1 do Laboratório de Luz Síncrotron de Shanghai.
E, para terminar, e ilustrar um pouco mais a beleza por trás da cristalografia, deixo algumas perguntas feitas por Max Perutz, ganhador do Prêmio Nobel de Química, em 1962, no início de um seminário que ele proferiu em julho de 1996, no Churchill College, Cambridge, UK:
“Por que a água ferve a 100ºC e o metano a -161ºC? Por que o sangue é vermelho e a grama é verde? Por que o diamante é duro e a cera é mole? Por que o grafite escreve no papel e a seda é forte? Por que as geleiras fluem e o ferro fica duro quando você o martela? Como os músculos se contraem? Como a luz solar faz as plantas crescerem e como os organismos vivos foram capazes de evoluir para formas cada vez mais complexas…? As respostas para todos esses problemas vieram da análise estrutural”.
Referências:
Kriptonita, vibranium ou adamantium: qual é o mais resistente?
O Senhor dos Anéis, Anéis de Poder
Elton Alisson, “Avanço da cristalografia é destacado por pesquisadores”
Jin, Z. et al. “Structure of Mpro from SARS-CoV-2 and discovery of its inhibitors”, Nature, 582, 289-293 (2020).
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