Saúde na ponta da língua (V.8, N.9, P.5, 2025)

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Tempo de leitura: 6 minutos
#acessibilidade: A imagem é uma ilustração informativa sobre o papel de diferentes órgãos e componentes do sistema imune humano na produção e circulação de fluidos corporais e substâncias diversas. A ilustração mostra duas figuras humanas em posição anatômica (de frente, com os braços abertos lateralmente). Lado esquerdo – “Órgãos”: O corpo da figura está semi-transparente, permitindo ver alguns órgãos internos destacados: pulmões (em vermelho, no tórax); coração (entre os pulmões); rins (na região abdominal); próximo ao corpo há representações esquemáticas de secreções e fluídos. Centro: Um grande desenho em forma de gota, que representa a composição do fluido crevicular (fluido presente nas gengivas). Dentro da gota, aparecem diversos elementos presentes nesse fluido, incluindo: íons como K⁺, Ca²⁺, Na⁺, Cl⁻, HCO₃⁻, Mg²⁺; componentes biológicos como DNA, RNA, hormônios, lipídios, proteínas, ácidos úrico e úrico, albumina, creatinina, linfócitos; microrganismos como vírus, bactérias, fungos; outros elementos como glucose, células epiteliais descamadas, metabólitos, debris (resíduos); secreções das glândulas salivares; sangue e soro. Lado direito – “Sistema Imune”: A figura humana está novamente semi-transparente, com destaque para órgãos e tecidos do sistema imunológico, indicados por setas e rótulos: mucosas(vias nasais e boca); amígdalas e vasos linfáticos (no pescoço); timo (no centro do tórax); pele; baço (na lateral esquerda do abdômen); medula óssea (indicada nas pernas); linfonodos (gânglios linfáticos); vasos linfáticos (distribuídos pelo corpo). Também aparecem etiquetas flutuantes indicando a presença de microrganismos e secreções como secreção nasal e das amígdalas.

Texto escrito pelos colaboradores Gabrielle Jimenez e Herculano da Silva Martinho

Quando pensamos em exames médicos, geralmente imaginamos agulhas, sangue e laboratórios. Mas e se um simples teste de saliva pudesse dizer se estamos doentes? A ciência tem mostrado que isso é possível — e é exatamente aí que entra a salivômica, uma área inovadora da medicina.

A saliva, que muitas vezes associamos apenas à digestão ou à saúde bucal, está se revelando uma fonte valiosa de informações sobre a saúde do nosso corpo. Fácil de coletar e rica em dados, a saliva está sendo usada como uma ferramenta promissora para o diagnóstico de diversas doenças.

A palavra “salivômica” vem da junção de “saliva” com “ômica”, termo usado para áreas da biologia que estudam grandes conjuntos de dados relacionados a componentes do nosso corpo, como genes (genômica), proteínas (proteômica) ou metabólitos (metabolômica). Assim, salivômica é o estudo completo dos componentes presentes na saliva.

Esses componentes incluem proteínas, enzimas, ácidos nucleicos (como DNA e RNA), metabólitos (substâncias químicas produzidas pelo corpo), microrganismos (como bactérias).

A salivômica busca entender como essas substâncias mudam em resposta a doenças, permitindo que a saliva seja usada para diagnóstico, monitoramento e até mesmo previsão de problemas de saúde.

A saliva oferece várias vantagens em relação a outros fluidos corporais, como o sangue:

  1. Coleta fácil e não-invasiva: Para coletar saliva, basta cuspir em um tubo. Não é preciso agulhas ou procedimentos incômodos.
  2. Segura e prática: A coleta é mais segura para pacientes e profissionais da saúde, pois não envolve risco de contaminação com sangue.
  3. Repetível: Pode ser coletada diversas vezes ao dia, permitindo o monitoramento contínuo de doenças.
  4. Armazenamento e transporte simples: A saliva pode ser armazenada em temperatura ambiente com aditivos, o que facilita seu uso em áreas remotas ou com poucos recursos.

A saliva pode conter pistas sobre muitas condições de saúde. Veja algumas áreas onde ela já está sendo usada:

1.Doenças infecciosas

Durante a pandemia de COVID-19, a saliva ganhou destaque como método de teste. Estudos mostraram que o vírus SARS-CoV-2 pode ser detectado na saliva, o que permitiu o uso de testes salivais como alternativa aos testes com cotonete no nariz.

Além da COVID-19, a saliva pode ser usada para detectar vírus como HIV, herpes e influenza, e bactérias como as que causam tuberculose ou sífilis

2.Câncer

A salivômica está sendo usada na busca por biomarcadores — substâncias que indicam a presença de câncer. Por exemplo, estudos já identificaram mudanças em proteínas e RNA na saliva de pessoas com câncer bucal, de mama e até de pâncreas.

Isso pode permitir a criação de testes simples para detectar esses tipos de câncer em estágios iniciais.

3.Doenças autoimunes e inflamatórias

Pessoas com doenças como síndrome de Sjögren (que afeta glândulas salivares), lúpus ou artrite reumatoide apresentam alterações nos componentes da saliva. A identificação dessas mudanças ajuda no diagnóstico e no acompanhamento do tratamento.

4.Distúrbios hormonais e metabólicos

A saliva também pode conter hormônios, como o cortisol (relacionado ao estresse), além de sinais de diabetes ou doenças da tireoide. Monitorar essas substâncias na saliva pode ser uma forma menos invasiva de acompanhar o estado de saúde de pacientes crônicos.

5.Saúde mental e estresse

O cortisol salivar é um marcador importante para avaliar o estresse e doenças relacionadas, como depressão ou transtornos de ansiedade. A coleta de saliva permite avaliar os níveis hormonais ao longo do dia, ajudando a mapear padrões de desequilíbrio emocional ou físico.

6.Doenças neurológicas e degenerativas

Estudos recentes têm investigado a presença de biomarcadores da doença de Alzheimer, Parkinson e esclerose múltipla na saliva. Embora essas pesquisas ainda estejam em estágios iniciais, elas mostram grande potencial para diagnósticos menos invasivos no futuro.

A análise da saliva exige tecnologias avançadas, como:

  • Espectrometria de massa: Identifica proteínas e outras moléculas em pequenas quantidades.
  • PCR (Reação em Cadeia da Polimerase): Detecta material genético, útil para identificar vírus e mutações.
  • Microarranjos de DNA/RNA: Permitem estudar milhares de genes ou microrganismos de uma só vez.
  • Biossensores: Dispositivos que identificam substâncias específicas na saliva de forma rápida.

Além disso, com o avanço da inteligência artificial, essas análises estão se tornando mais rápidas, precisas e acessíveis.

Apesar de promissora, a salivômica ainda enfrenta alguns obstáculos:

  • Padronização: A composição da saliva pode variar muito entre pessoas e até ao longo do dia. É preciso padronizar horários, métodos de coleta e armazenamento.
  • Sensibilidade dos testes: Algumas doenças causam alterações sutis, que exigem técnicas muito sensíveis para serem detectadas.
  • Regulamentação e validação clínica: Antes de chegar ao mercado, os testes precisam ser validados por estudos clínicos rigorosos e aprovados por órgãos reguladores.

A tendência é que a saliva ganhe cada vez mais espaço na medicina preventiva, personalizada e de precisão. Em vez de esperar que sintomas apareçam, poderemos detectar doenças em fases iniciais com um simples teste de saliva — em casa, no consultório ou até por meio de aplicativos conectados a dispositivos portáteis.

Algumas possíveis aplicações futuras incluem:

  • Testes caseiros para monitoramento de saúde (como já acontece com os de gravidez ou COVID)
  • Detecção precoce de câncer com base em biomarcadores salivais
  • Avaliação de risco genético para doenças hereditárias
  • Monitoramento de atletas e profissionais expostos a altos níveis de estresse

A saliva está deixando de ser apenas um fluido associado à boca para se tornar uma janela para todo o corpo. Com a ajuda da salivômica, podemos transformar a forma como diagnosticamos, tratamos e prevenimos doenças — de maneira mais acessível, menos invasiva e altamente eficaz.

Essa revolução ainda está em andamento, mas uma coisa é certa: o futuro da medicina pode estar na ponta da língua.

Fontes:

Gabrielle Jimenez, Letícia Foiani, Julia Toledo Figueiredo, Mariana Sá Alves, Nayara Sá Rodrigues, Celso Muller Bandeira, Mônica Ghislaine Oliveira Alves, Janete Dias Almeida, Herculano da Silva Martinho,”Histine, carbohydrates/polysaccharides, and proteins with β-sheet conformation as promising staging markers for oral squamous cell carcinoma”, Spectrochimica Acta Part A: Molecular and Biomolecular Spectroscopy, 340, 126296 (2025) https://doi.org/10.1016/j.saa.2025.126296.

Gabriela Ribeiro Zucco, Taís Maria Cardoso de Oliveira, Thaís Xavier Pereira da Silva, Sandra Silva Marques, Fernando Sabbag, Marcelo Ribeiro de Araújo, Rodrigo Melim Zerbinati, Paulo Henrique Braz-Silva, José Ângelo Lindoso, Gabrielle Luana Jimenez Teodoro Nepomuceno, Letícia Foiani, Herculano da Silva Martinho, Janete Dias Almeida, Heliyon, 11, e41381 (2025). https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2024.e41381

Para saber mais:

-Papale F, Santonocito S, Polizzi A, Giudice AL, Capodiferro S, Favia G, Isola G. “The New Era of Salivaomics in Dentistry: Frontiers and Facts in the Early Diagnosis and Prevention of Oral Diseases and Cancer|”. Metabolites. 12, 638 (2025). https://doi.org/10.3390/metabo12070638

-Shah S. “Salivaomics: The current scenario”. J. Oral Maxillofac. Pathol., 22, 375 (2018). https://journals.lww.com/jpat/fulltext/2018/22030/salivaomics__the_current_scenario.19.aspx

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