Quem vê qual céu? (V.8, N.8, P.3, 2025)

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Tempo de leitura: 5 minutos
#acessibilidade: asterismo da Ema no céu noturno. Fonte: Observatórios Virtuais – Constelações Indígenas (Germano Afonso).

Texto por  Kelly França

Kuaray, o Sol, cria Jaxy, seu irmão gêmeo Lua, e ambos vão em busca de seu pai Nhanderu, ser-criador. Nessa jornada, os irmãos chegam ao céu com o objetivo de iluminar o mundo. Por ser o irmão mais velho, Kuaray é forte e intenso; já seu irmão, é fraco e precisa de tempo para descansar. É por isso que vai desaparecendo do céu durante o mês. 

O mito anterior mostra a história do Sol e “do” Lua, segundo interpretação dos Mbyá-Guarani. Ele retrata de forma cosmogônica fenômenos astronômicos, como as fases da Lua, a temperatura e luminosidade do Sol, além do porquê de existirem bolas gigantes rolando no céu. 

Quando pensamos em astronomia, de cara imaginamos as constelações greco-romanas – que parecem aquele jogo de unir pontinhos que fazíamos na pré-escola. Entretanto, há relatos de observações astronômicas avançadas em povos ameríndios, africanos e asiáticos. A área que estuda o desenvolvimento da astronomia em diferentes contextos socioculturais e históricos é chamada de Astronomia Cultural

É claro que o comportamento dos astros sempre foi motivo de exaltação e mistério, o que, consequentemente, gera um caráter religioso e místico em sua observação. Dito isso, posso afirmar com confiança que o estudo da astronomia não é um mero capricho. A observação e análise do céu servia como marcador ecológico e temporal, necessário para que fosse possível compreender a natureza plenamente. Se você souber olhar, consegue encontrar um calendário, um mapa, uma revista de fofocas que conta o comportamento dos animais;  tudo isso naqueles “pontinhos” no céu.

Tem um motivo pelo qual a astronomia é uma das ciências mais antigas que existem. Seu estudo é de extrema importância para o desenvolvimento da agricultura. Observando-se os astros é possível prever o melhor momento de plantio e colheita, permitindo o desenvolvimento das primeiras civilizações. 

Atualmente, a agroecologia resgata esses conhecimentos ancestrais para elaborar técnicas de plantio que maximizam a produção agrícola de forma mais sustentável. Entre essas técnicas, nota-se o desenvolvimento de um Calendário Biodinâmico, que determina as melhores épocas de plantio, manejo e colheita. Um dos parâmetros utilizados na construção desse material são as fases da lua e a localização das constelações. 

Mesmo sendo uma área essencial da ciência desenvolvida por povos indígenas por todo o mundo, a astronomia, que é popularizada e ensinada, é apresentada apenas pela sua forma eurocêntrica. O paradigma europeu, formalizado pela União Astronômica Internacional, reconhece a existência de 88 constelações (entre essas 13 fazem parte do famoso zodíaco). Essas são as constelações que aprendemos e que apreciamos desde os primeiros anos escolares. 

De fato, não podemos deixar de lado a padronização do céu, visto que é necessária para seu estudo. Entretanto, também é importante reconhecermos a astronomia tradicional dos povos originários para que esse conhecimento não seja apagado. 

Uma das primeiras diferenças que observamos entre as constelações gregas e indígenas é que as últimas consideram não só as estrelas, como também as manchas claras e escuras da Via Láctea. Quando falamos de tudo que não são as constelações oficiais, usa-se a denominação “asterismo” – e esse é o termo que usaremos para falar do céu indígena.

Um exemplo claro dessa diferença é a Via Láctea, conhecida pela maior parte das etnias indígenas brasileiras como “Caminho da Anta”. Nessa região do espaço encontramos alguns destaques, como:

O asterismo da Ema, chamado de Guyra Nhandu pelos Guarani. Esse é um asterismo composto, formado pelas estrelas que formam a imagem da Ema e das manchas ao redor que formam o seu “caminho”, na Via Láctea.

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Figura 1: Secção do céu noturno oficial versus asterismo da Ema. Fonte: Observatórios Virtuais – Constelações Indígenas (Germano Afonso).

É interessante constatar que o povo Tikuna observa nessa mesma região, durante o período de seca no verão, o asterismo que representa a briga entre a Onça e o Tamanduá.

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Figura 2: Secção do céu noturno oficial versus asterismo da Ema. Fonte: História da Astronomia do Brasil, vol. I (2013), Oscar T. Matsuura – pg. 122.

No início do período de estiagem, a Onça está por cima, saindo na ofensiva, já no final da seca, elas trocam de posição e o Tamanduá é quem domina o conflito.

Outro asterismo conhecido é a Anta do Norte, Tapi’i, em guarani. Para os indígenas no Norte do país quando ela aparece é um período entre a seca e a chuva. Como ela fica inteira dentro da Via Láctea, daí surge o nome de “Caminho da Anta”.

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Figura 3: Secção do céu noturno oficial versus asterismo da Anta do Norte. Fonte: Observatórios Virtuais – Constelações Indígenas (Germano Afonso).

O céu é um reflexo do que estamos percebendo ao nosso redor. O céu greco-romano é um símbolo do ideal antropocêntrico da época, em que as formas celestes são memórias dos triunfos alcançados pelos seus deuses e protegidos. Já o céu indígena, apresenta outra perspectiva, suas estrelas formam animais e seres da natureza, seus astros também são deuses, mas sua relação com o meio é bem diferente. 

Nos resta apenas refletir sobre qual céu estamos vendo. Será que a falta de um céu estrelado nos faz bem? Como isso afeta a nossa relação com o ambiente em que vivemos? Qual céu você gostaria de observar? Perguntas para se pensar da próxima vez que você estiver olhando pro Caminho da Anta. 

Referências:

http://www.telescopiosnaescola.pro.br/indigenas.pdf

História da Astronomia no Brasil (2013) – pdf

Para saber mais:

https://super.abril.com.br/ciencia/astronomia-indigena-como-os-povos-originarios-viam-e-veem-o-ceu

https://revistacienciaecultura.org.br/?p=3257

http://www.aboriginalastronomy.com.au/ (Astronomia dos Aborígenes Australianos)

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