De Carnot a Gibbs: uma breve (muito breve!) história da Termodinâmica (V.6, N.8, P.3, 2023)

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Tempo de leitura: 9 minutos
#acessibilidade: Foto aérea da usina termoelétrica 27 Severnaya, no oblast de Moscou, Rússia. Na foto, temos uma visão geral da usina, que utiliza gás natural para produzir energia elétrica. Especial destaque para as duas grandes torres de resfriamento do lado esquerdo da imagem liberando vapor d’água.

Texto escrito por Luis Henrique de Lima

A palavra “termodinâmica” vem da combinação das palavras de origem grega therme, que significa  “calor” e dynamis que significa “potência”. Em termos gerais, a termodinâmica é o ramo da física que lida com a transferência de energia entre um sistema e seu ambiente ao redor. Essa transferência de energia se dá através de grandezas físicas conhecidas como calor e trabalho e resulta em variações de propriedades do sistema como temperatura, volume, pressão entre outras. Resumindo, a termodinâmica é a ciência do calor. A teoria termodinâmica não emergiu como uma ciência quantitativa até o final do século XVIII, quando era baseada no conceito de “calórico”. Repare que ainda utilizamos a palavra caloria nos dias atuais como uma unidade de energia (cal), principalmente para definir o valor energético (ou calórico) de alimentos. Entretanto, até meados do século XIX, a teoria calórica tinha como premissa que essa grandeza, o calórico, era uma quantidade que podia fluir entre corpos de diferentes temperaturas, sendo um fluido inodoro e sem massa e que tal grandeza não podia ser destruída, ou seja, era conservada. Como veremos, um dos maiores avanços da termodinâmica foi a observação que calor pode ser convertido em trabalho e vice-versa.

O avanço da termodinâmica está diretamente ligado à Primeira Revolução Industrial (1760-1830) [1]. A tecnologia protagonista neste período foi o motor a vapor, em especial na indústria têxtil, com o surgimento dos teares mecanizados a vapor. Um motor a vapor é um tipo de máquina térmica, que por sua vez, é um aparelho que opera em ciclo entre dois reservatórios de energia em temperaturas diferentes. A máquina térmica opera absorvendo energia por calor do reservatório mais quente, depois convertendo uma fração desta energia em trabalho útil e, finalmente, expelindo o restante desta energia para o reservatório mais frio e reiniciando todo o processo (processo cíclico). Um exemplo típico é o motor a combustão dos carros: o reservatório quente de energia é a explosão da mistura ar e combustível, em que energia é absorvida e trabalho útil é realizado, ou seja, o carro se move. Porém, uma parte da energia inicialmente absorvida é descartada através dos gases que saem do escapamento para a atmosfera (que seria o reservatório frio nos estudos de termodinâmica). Portanto, durante a Primeira Revolução Industrial, um importante desafio tecnológico consistia em tentar aumentar a eficiência de máquinas térmicas ou, alternativamente, aumentar a fração da energia inicial absorvida por calor que é convertida em trabalho útil. É a partir desta importante questão econômica que a termodinâmica se desenvolveu.

Em 1824, o engenheiro militar francês Sadi Carnot (1796-1832) escreveu uma importante obra chamada “Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres a développer cetee puissance” (“Reflexões sobre a força motriz do fogo e sobre as máquinas adequadas para desenvolver essa força”). Aqui, força motriz significa trabalho e fogo significa calor. Carnot queria responder a duas perguntas principais: (1) o quanto de trabalho está disponível em uma fonte de calor? e (2) podemos obter mais trabalho se substituirmos a substância de trabalho, neste caso vapor, por outra substância? As respostas que ele obteve e que publicou em seu livro foram que (1) o trabalho extraído aumenta se a diferença de temperatura entre os reservatórios aumenta e (2) que os resultados são independentes da substância de trabalho. Além disso, Carnot apresentou um conceito que é fundamental na termodinâmica, o chamado ciclo de Carnot, que estabelece um limite superior na eficiência de qualquer máquina térmica. As consequências que sua obra trouxe no desenvolvimento seguinte da teoria termodinâmica são imensuráveis. Esta obra foi a única publicada por Carnot em sua vida, que a financiou de seu próprio bolso. Sua obra ficou esquecida por alguns anos, sem ter atraído muita atenção da comunidade científica logo após ter sido publicada, pois, apesar das importantes observações feitas por Carnot, sua obra utilizava uma linguagem não-matemática, com conclusões quantitativas pouco precisas e não foram bem aceitas inicialmente.

Em 1834, o engenheiro francês Benoît Émile Clapeyron (1799-1864), publicou um artigo intitulado “Mémoire sur la Puissance Motrice de la Chaleur” (“Memórias sobre a Potência Motriz do Calor”). Um fato importante sobre este artigo foi o de trazer à luz da comunidade científica os resultados prévios (e esquecidos) de Carnot, em uma linguagem matemática formal. É impressionante como este artigo  apresenta pela primeira vez alguns ingredientes da termodinâmica que são utilizados até hoje. É neste artigo que foi utilizado pela primeira vez um diagrama pv (um gráfico com a variável v (volume) no eixo das abscissas e p (pressão) no eixo das ordenadas). Também neste artigo há o primeiro uso de expressões diferenciais do cálculo para descrever variáveis termodinâmicas, algo que se tornou tradicional em qualquer tipo de texto sobre o assunto. Neste artigo, Clapeyron faz uso da letra Q para designar calor e R para a constante dos gases ideais, assim como a maioria dos livros e artigos o fazem até hoje. Falando em gás ideal, é neste artigo que a equação de estado combinada para o gás ideal é apresentada pela primeira vez: pv=R(267+t), onde t é a temperatura em graus Celsius. Sim, o termo numérico 267 aparece pois a escala absoluta Kelvin de temperatura só viria a ser inventada em 1848 [2]!

Como citado anteriormente, a teoria que dominava os estudos sobre o calor no início do século XIX utilizava o conceito de calórico, ou seja, o calor era uma propriedade dos objetos que podia ser passada de um corpo para outro e que era conservada. Essa teoria equivocada durou até o surgimento da 1ª Lei da Termodinâmica. Não é possível estabelecer um único criador para a 1ª Lei, mas seu surgimento se dá, principalmente, pelos trabalhos dos alemães Julius Robert von Mayer (1814-1878), Hermann von Helmholtz (1821-1894) e Rudolf Clausius (1822-1888), do dinamarquês Ludvig Colding (1815-1888), do inglês James Joule (1818-1899) e do irlandês William Thomson (1824-1907). Basicamente, temos que a grandeza calor e sua contraparte mecânica, o trabalho, são formas distintas de transferência de energia (associadas a um processo) e que uma pode ser convertida na outra e, de fato, a grandeza física que é conservada é a energia (o que comumente chamamos de energia interna). Para citar explicitamente uma obra fundamental para o estabelecimento da 1ª Lei da Termodinâmica, temos o livro de Helmholtz publicado em 1847 intitulado “Über die Erhaltung der Kraft, eine physikalische Abhandlung” (“Sobre a conservação da força, um tratado de física”). Neste livro, Helmholtz estabelece que “todos os modos de energia, calor, luz, eletricidade e todos os fenômenos químicos são capazes de transformarem de um no outro, mas são indestrutíveis e não podem ser criados”. Interessante notar que o conceito de energia como uma função (ou equação) de estado não era totalmente claro em meados do século XIX. Em 1850, Clausius publicou um importante artigo intitulado “Über die bewegende Kraft der Wärme” (“Sobre a força motriz do calor”). Neste artigo, Clausius introduz uma função arbitrária U(V,t), mas não atribui a essa função a interpretação de energia [3]. Pouco tempo depois, em 1851, William Thomson, posteriormente conhecido como Lorde Kelvin, publica outra importante obra sobre a teoria do calor intitulada “On the Dynamical Theory of Heat, with Numerical Results Deduced from Mr. Joule’s Equivalent of a Thermal Unit and M. Regnault’s Observations on Steam”, em que é introduzida por Thomson a função e(V,t), chamada inicialmente por ele de energia mecânica e depois de energia intrínseca. Apenas em 1865, Clausius finalmente aceitou o termo “energia” para a sua função U. Curiosamente, o uso da letra U para a função energia interna é comumente empregado nos dias atuais, enquanto que o nome energia interna foi cunhado por Helmholtz [3].

Seguindo com Clausius e Thomson e seus importantes trabalhos citados anteriormente, é atribuída a ambos a formulação do que hoje é conhecida como a 2ª Lei da Termodinâmica. Segundo Clausius  “nenhum processo é possível cujo único resultado é a transferência de calor de uma corpo mais frio para um corpo mais quente”.  Em outras palavras, o enunciado da 2ª Lei da Termodinâmica segundo Clausius estabelece que a energia não flui espontaneamente por calor de um objeto frio para um objeto quente. Isso parece bastante óbvio hoje em dia, mas foi uma forma de refutar o calórico, que se existisse podia migrar de qualquer corpo para outro, independente das temperaturas desses corpos! 

Já a declaração da 2ª Lei da Termodinâmica segundo Thomson (ou Kelvin) estabelece que “É impossível, por meio da ação de material inanimado, obter efeito mecânico de qualquer porção de matéria resfriando-a abaixo da temperatura do mais frio dos objetos circundantes”. Thomson observou, como o nome do seu artigo sugere, que o calor não é uma substância, mas uma propriedade que pode ser transformada e dissipada em outra forma de energia associada ao movimento dos constituintes microscópicos do sistema. A declaração de Thomson foi completada pela formulação de Max Planck, levando ao que temos hoje como o enunciado da 2ª Lei da Termodinâmica segundo Kelvin-Planck: “É impossível construir uma máquina térmica que, operando em um ciclo, não produza nenhum efeito além da absorção de energia por calor de um reservatório e a realização de igual quantidade de trabalho”[4]. Em termos gerais, o enunciado segundo Kelvin-Planck estabelece que não há nenhuma máquina térmica com rendimento de 100% e, mais do que isso, o rendimento máximo possível é estabelecido pela eficiência de Carnot. 

Apesar de tão bem estabelecidas, é comum o recebimento, por escritórios de patentes de todo o mundo, o pedido de patentes para máquinas e dispositivos que violam a 1ª ou a 2ª Lei da Termodinâmica, as chamadas máquinas de movimento perpétuo [5]. É importante citar que a 2ª Lei da Termodinâmica, em qualquer uma das suas formulações, está relacionada com uma propriedade física dos sistemas, um tanto quanto abstrata, chamada entropia. Não falaremos sobre entropia aqui já que ela merece um texto só para si.

Nosso próximo personagem dessa breve história da Termodinâmica é o físico estadunidense Josiah Willard Gibbs (1839-1903). Quando se lê um pouco sobre a vida e a obra de Gibbs, a impressão que temos é que ele foi um gênio da matemática. São inúmeros os comentários direcionados a ele, sobre sua genialidade, por outros importantes cientistas da época. Por exemplo, Ludwig Boltzmann teria dito que Gibbs era “o maior matemático sintético desde Newton” e Wilhelm Ostwald que Gibbs foi “sem dúvida o maior gênio científico que os Estados Unidos produziu” [2]. Sua principal obra sobre a termodinâmica foi publicada em 1876, intitulada “On the Equilibrium of Heterogeneous Substances” (“Sobre o Equilíbrio de Substâncias Heterogêneas”), que é considerado o “Principia” da Termodinâmica, em referência ao livro de Isaac Newton de 1687. As contribuições teóricas de Gibbs foram fundamentais para tornar a termodinâmica uma ciência dedutiva rigorosa. Junto com James Clerk Maxwell (1831-1879) e Ludwig Boltzmann (1844-1906), Gibbs criou a mecânica estatística, explicando as leis da termodinâmica como consequências das propriedades estatísticas de um sistema de partículas formado por um número muito grande de constituintes.

É claro que este texto é um recorte que aborda, apenas, um período de aproximadamente 50 anos do desenvolvimento da teoria termodinâmica. Vários personagens importantes deste período ficaram de fora e muito outros vieram, após Gibbs, desenvolvendo esse importante campo da ciência. Vale citar o químico alemão Walther Nernst (1864-1941), o qual ganhou o prêmio Nobel de química em 1920 sobre seus trabalhos em termoquímica. Concluindo, a termodinâmica é um ramo fundamental da física que surgiu de uma necessidade econômica e que tem sua importância e consequências até os dias atuais. Não há discussão sobre aquecimento global, mudanças climáticas, geração e fontes renováveis de energia sem que a termodinâmica desempenhe um papel de destaque nestes assuntos.

 

Fontes:

[1] A Primeira Revolução Industrial, Nerdologia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m_KTF3iNrY0.

[2] Gregory S. Girolami; A Brief History of Thermodynamics, As Illustrated by Books and People; Journal of Chemical & Engineering Data 65, 298 (2020).

[3] William H. Cropper; Great Physicists: the life and times of leading physicists from Galileo to Hawking; Oxford University Press, Inc. (2001); página 96.

[4] Raymond A. Serway e John W. Jewett Jr.; Princípios de Física, volume 2; Cengage Learning (2017); página 202.

[5] Christopher Wadlow; Patents for perpetual motion machines; Journal of Intellectual Property Law & Practice 2, 136 (2007).

Fonte da imagem destacada. Wikipédia. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:%D0%A2%D0%AD%D0%A6-27.jpg.

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