#acessibilidade Imagem do pé de uma escultura chamada Dolmen de Dal, de Salvador Dalí, localizada em Madri, Espanha. A imagem mostra o pé em foco com os dedos separados do resto do corpo, tudo na cor preta.
Texto escrito pelos colaboradores Regina Carneiro da Silva e Breno Arsioli Moura
Em 1997, na cidade de Salvador, homem negro de 49 anos dirigiu-se ao Hospital Santa Izabel, queixando-se de feridas no quinto dedo de ambos os pés. O homem negou ter sofrido algum trauma na região e disse que essas feridas estavam presentes desde três anos antes. Seu pedido à equipe médica era de que amputassem esses dedos.
Uma doença descoberta há mais de 150 anos, ainda sem uma causa definida. Sim, isso existe! É o caso da moléstia conhecida como “ainhum”, descrita pela primeira vez em 1867 pelo médico português, naturalizado brasileiro, José Francisco Silva Lima (1826-1910). O médico estudou cerca de 53 casos de ainhum, a maior parte deles na população negra do país na época (escravos e libertos) e os chamados “crioulos” (filhos de escravos e colonizadores) – daí a denominação de doença dos escravos. Seus estudos acerca da moléstia foram publicados na Gazeta Médica da Bahia, um dos principais periódicos científicos da época.
De modo geral, o ainhum é conhecido por afetar os dedos dos pés, especialmente o dedo mínimo, formando um anel constritivo que vai, aos poucos, resultando na amputação espontânea do dedo. O processo é extremamente doloroso, fazendo com que os acometidos procurem ajuda médica para amputar. O tempo médio entre os sintomas iniciais e a completa remoção do dedo é de 10 anos. Além do dedo, a pele ao redor da infecção torna-se áspera ao toque, provocando “rachaduras” que posteriormente evoluem para feridas. Em seu primeiro estudo sobre o ainhum, Silva Lima descreveu o procedimento que realizou no primeiro caso que teve contato, que consistiu em realizar incisões perpendiculares na pele que se formou ao redor do dedo. Contudo, esse processo era apenas paliativo, assim como a aplicação de pomadas e unguentos da época nas feridas formadas. A descrição do parágrafo anterior corresponde a um dos casos atendidos por Silva Lima.
Na figura abaixo, retirada do primeiro artigo de Silva Lima sobre a moléstia na Gazeta Médica da Bahia, vemos o dedo mínimo do pé direito do indivíduo completamente saltado. O dedo mínimo do pé esquerdo também já apresentava sinais de ainhum.
A relação entre a doença e pessoas negras se estende também ao nome. O termo “ainhum” é originário dos pretos nagôs, que seriam os africanos originários da Costa da Mina – região onde hoje estão atualmente Gana, Togo, Benim e Nigéria. Traduzida diretamente como “frieira”, Silva Lima argumentou que a palavra em português não era adequada para descrever o que a doença realmente causava. No entanto, outros negros explicaram que ainhum seria o equivalente a “serrar”, que Silva Lima julgou ser mais apropriado. O médico manteve a denominação dada pelos escravos que tratou.
Entre as hipóteses estudadas na época, estava a de que o fato de os povos negros escravizados andarem descalços causaria a doença (pelo atrito entre o pé e o chão), entretanto, como a doença acometia os libertos também, essa hipótese foi logo descartada. Silva Lima também descartou a possibilidade de que o ainhum fosse causado pelos próprios negros, para que pudessem fugir do trabalho escravo. Mais uma vez, o fato de haver casos nos libertos também afastava essa suposição. Mesmo após anos da primeira publicação, nem Silva Lima nem outros pesquisadores da época foram capazes de estabelecer uma causa exata para o ainhum, sendo ainda desconhecida até os dias atuais. Acredita-se, hoje, que exista uma predisposição genética para a doença, o que, aliada a possíveis traumas, a causaria.
Desde 2020, temos realizado um estudo historiográfico sobre o ainhum, buscando entender, entre outros pontos, como questões raciais influenciaram na atenção dada à doença desde sua primeira descrição por Silva Lima. Sabe-se que a população negra sempre sofreu com a falta de políticas públicas, o que não se alterou com o fim da escravidão na segunda metade do século 19. O pouco conhecimento sobre as causas do ainhum é um claro reflexo dessa negligência aos povos negros do Brasil. Saber da existência do ainhum e de seu percurso histórico é fundamental para refletirmos sobre questões importantes da história da medicina no país e dos rumos que podemos dar às políticas públicas de saúde aos diferentes estratos da sociedade.
Fontes:
Fonte da imagem destacada: dr_zoidberg / Flickr
Fonte da imagem 1: Gazeta Médica da Bahia, fev./1867, volume 13
LIMA, José Francisco da Silva. Estudo sobre o Ainhum: Moléstia ainda não descripta, peculiar a raça ethiopica e affectando os dedo minimos dos pés. Gazeta Médica da Bahia, Bahia, ed. 15, p. 172-176, fev. 1867.
LIMA, José Francisco da Silva. Para a historia do Ainhum: pelo Dr.Silva Lima. Gazeta Médica da Bahia, Bahia, n. 8, p. 356-359, fev. 1907.
PEREIRA, Pacífico. O Dr.Silva Lima. Gazeta Médica da Bahia, Bahia, v. 8, n. 8, p. 337-353, fev. 1910.
JAMBEIRO, Jorge S.; MATOS, Marcos Almeida; SILVA, Robson R. da; SANTANA, Flávio R.; QUEIROZ, Aristides Cheto de; MATOS, Selma S. Ainhum: ressurgimento histórico e científico. Revista Bras. Ortop., [s. l.], v. 32, n. 11, p. 924-926, 1997.
Para saber mais:
Site Oficial da Gazeta Médica da Bahia: http://www.gmbahia.ufba.br/index.php/gmbahia
Agradecimento:
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de Iniciação Científica que vem sendo realizado na UFABC, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo nº 2021/07223-1)