A ciência de ponta cabeça ou a manipulação como instrumento de poder – Parte 2 (V.7, N.10, P.2, 2024)

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Tempo de leitura: 6 minutos
#acessibilidade: A imagem ilustra uma rede de conexões, como peças de um jogo de tabuleiro, conectadas por uma fita azul. Entre essas peças, todas brancas, há uma vermelha.

Texto escrito por Ronei Miotto

[este é um artigo de opinião e não determina, necessariamente, a linha de pensamento dos outros membros do Guia]

Na parte 1 dessa nossa série, tratamos sobre dois casos emblemáticos de fraudes na ciência. Levando-se em conta o caráter absurdo, se não fossem nomeadas, poderíamos supor que foram cometidas por uma pessoa mal intencionada ou por um seleto grupo de senhores de dedos compridos, sobrancelhas avantajadas, sentados em uma sala com mobília feita de crânios e ossos humanos. Mas não caros leitores, definitivamente não.[1] As fraudes mais emblemáticas, foram capitaneadas por doutores de alta patente, até então, com um currículo imaculado. Em se tratando de um crime, fraudes científicas deixam rastros muito óbvios e por meio deles, é fácil identificar os autores.

A primeira questão que coloco aqui é: como um pesquisador, Eliezer Masliah novamente, em grande evidência, com um cargo cobiçado por muitos, conseguiu ficar à frente de um departamento governamental, decidindo como seriam aplicados recursos da ordem de bilhões de dólares, publicando e coordenando trabalhos relacionados à saúde humana? Por mais de 20 ANOS!!!!

Vale relembrar que essa linha de produção de dados falsificados produziu uma avalanche de mentiras, gerou substâncias inócuas que foram testadas em animais e seres humanos e como se não desse para piorar, e sempre dá, gerou uma onda de esperança para parentes e cuidadores de pacientes com a doença de Parkinson e Alzheimer. O caso Eliezer não só coloca em xeque os mecanismos de um dos maiores sistemas de financiamento de pesquisa do mundo,[2] como também, ao meu ver, desacredita a rede de revisores de artigos científicos que trabalham para as revistas/editoras especializadas.[3]

Seguimos aqui com mais questionamentos: como é que as publicações cheias de dados notoriamente manipulados, não foram contestadas por especialistas da área? Como ele conseguiu publicar tanta mentira e captar tanto financiamento para seu grupo de pesquisa? Como demorou tanto tempo para ele ser pego pelos crimes cometidos? Será que os critérios de concessão de recursos, baseados em falta de ou tom acinzentado dos cabelos (conhecido como passou dos 50), produtividade[4] e projetos aprovados contribuem de forma decisiva para mascarar ou tornar pouco relevante a falta de ética e a má conduta?

Falando em recursos, não usaremos da mesma leviandade daqueles que estão no hall da lama da ciência, tirando conclusões sem dados concretos, acusando-os de usar o financiamento da pesquisa para pagar os boletos das escolas dos seus filhos. Vamos falar de dinheiro sim, mas pelo prisma da aclamada meritocracia. Quando se empregam parâmetros quantitativos para direcionar recursos para o “melhor”, para o “mais produtivo”, para o pesquisador “mais citado”, é inserida em uma fórmula puramente matemática, a componente “risco de fraude”. Como assim? Vamos lá: para manter seu emprego, para manter os recursos entrando em seu laboratório, para atrair bons alunos e em quantidade, o pesquisador responsável pela linha de pesquisa precisa publicar. Hoje, mais do que em tempos não tão remotos, devemos publicar muito. Publicar um trabalho original exige uma ideia, um conjunto de experimentos, dinheiro e o tratamento dos dados para se chegar a uma conclusão. Isso leva tempo, dependendo da área, muito tempo. Se a linha de pesquisa é inovadora, o risco para o “desbravador” é gigantesco. Muitos continuam inovando e outros, seguem pelo caminho mais seguro. O fato aqui é que se algo começa a dar muito errado, seja para um ou outro tipo de linha de pesquisa, o fator “posso fraudar algo?” aparece como uma alternativa tentadora. Cai quem é fraco? Não serei aqui eu a julgar…

O problema cresce quando falamos de políticas de financiamento público enviesadas para determinado ramo da pesquisa ou que empregam parâmetros comparativos pouco claros. Atualmente e em todas as nações, grande parte dos recursos vão para pesquisadores consagrados, cerceando a oportunidade de recém doutores coordenarem suas linhas de pesquisa, pois sem renome, currículo inflado, ou apadrinhamento, recebem centenas de “nãos” aos seus pedidos de financiamento de pesquisa. Muitos desses novos/jovens pesquisadores, fazem sua pesquisa com pouco ou nenhum recurso e uma parte deles, especialmente as mulheres,[5] desistem da carreira. A criatividade, a inventividade e a pluralidade da ciência vão sendo drenadas pelas forças que dominam os recursos, mantendo o ciclo vicioso, a máquina nas mãos da “velha guarda”, que tem medo do novo, pavor das críticas e da ousadia das mentes mais jovens.

Quem vai se responsabilizar pelas portas fechadas aos pesquisadores iniciantes, pelo dinheiro público jogado na lata do lixo, pelos curriculos de pesquisadores que inocentemente trabalharam ou colaboraram com os fraudadores?[6] Será que as grandes editoras, os revisores que fecharam os olhos para as fraudes documentais, os burocratas que assinaram a liberação das verbas para linhas de pesquisa montadas em cima de mentiras pagarão a conta?

Além da pesquisa em si, é nosso dever como cientistas, abrir o livro da história da ciência não só para apresentar os grandes feitos, mas também para expor seus enormes defeitos. Espero que tenha ficado claro que fraudes na ciência não são cometidas por indivíduos, mas sim, são crimes acobertados por uma rede de avaliadores e mercadores do conhecimento científico, que se não são coniventes, demonstram uma enorme incompetência.

As mentiras e factóides plantados com a alcunha de “ciência”, não produzem apenas artigos que serão apagados da história. Esse material serve de combustível para negacionistas, extremistas, anti-vax, para o ódio contra as minorias e para a manipulação das massas. É isso que queremos?

Se o não é sua resposta, você está no lugar certo. Seja também um Entusiasta da Ciência, trilhe seu caminho guiado pela Honestidade, Imparcialidade, Cuidado, Respeito, Veracidade e Responsabilidade.

REFERÊNCIAS E NOTAS

[1] Até o momento, jamais foram encontradas salas secretas, no porão de laboratórios de pesquisa, com runas entalhadas nas paredes.

[2] O orçamento proposto para o NIH em 2025 é de US$ 50,1 bilhões (não, você não leu errado, são mais de 50 bilhões de dólares, ou aproximadamente 1/20 dos R$ 5,87 trilhões previstos no PLN 26/2024 para o orçamento brasileiro de 2025). Disponível em https://officeofbudget.od.nih.gov/, acesso em 04/10/2025.

[3] Vale destacar que antes de publicar um artigo científico, o texto (chamado de manuscrito), necessariamente tem que passar pela revisão de três pesquisadores de áreas correlatas ao trabalho em análise. Pesquisadores estes, que são chamados de revisores; cuja função, resumidamente, é avaliar criteriosamente se os dados foram coletados corretamente, tratados adequadamente e se a base teórica conversa com a parte experimental.

[4] produtividade no ramo da ciência é um parâmetro que mede a quantidade de trabalhos publicados em revistas especializadas, dentro de um intervalo de tempo.

[5] a falta de equidade na ciência não se diferencia muito do que acontece nas outras profissões. Apesar das mulheres representarem cerca de 54% dos doutorandos nos programas de pós-graduação do Brasil, o peso das funções socialmente estabelecidas como “de mulheres”, cuidar dos filhos, cuidar da casa…em pleno século XX!, ainda continuam pesando de forma significativa na carreira das pesquisadoras. Um dado recente mostra que durante a pandemia de COVID-2, em 2020, apenas 47% das cientistas mulheres com filhos estavam submetendo artigos científicos, contra 76% dos cientistas homens sem filhos. Os dados são de uma pesquisa feita com mais de três mil acadêmicos pelo Parent in Science, publicados em 2021 na Frontiers in Psychology.

[6] A autoria dos trabalhos científicos se divide entre o autor de correspondência, aquele que teve a ideia original do trabalho, gerencia a pesquisa e os co-autores. O autor de correspondência não consegue executar todos os experimentos, tratar todos os dados e escrever todo o manuscrito. Esse trabalho mais braçal, de maneira geral, fica a cargo dos pós-graduandos (pesquisadores) e de colaboradores (que também são co-autores ). Eles são convidados para contribuir com o trabalho porque são especializados em uma técnica, então fazem uma análise, um teste, um experimento.

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